domingo, 6 de fevereiro de 2022
MARCELO PREPARA VIGILÂNCIA ACTIVA - EXPRESSO - Ângela Silva
POLÍTICA
Marcelo prepara vigilância ativa
Apanhado de surpresa, PR festejou estabilidade ao centro e encara a maioria absoluta como uma exigente oportunidade. Para os dois?
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08:19 6 Fevereiro, 2022 | Ângela Silva
Desta vez, nem o special one da análise política antecipou a maioria absoluta do PS, que acaba de relançar António Costa para um ciclo apenas comparável aos 10 anos de Cavaco Silva no poder. Marcelo Rebelo de Sousa apostou que o PS ia ganhar (sempre duvidou que Rui Rio, sem se ter coligado pelo menos com o CDS, conseguisse chegar lá), mas nunca achou possível um resultado tão esmagador. Os vaticínios do Presidente da República alinharam pela leitura fina do que a montanha-russa das sondagens e tracking pools diários foi sinalizando — o PS ganhava, mas sem maioria absoluta —, e foi nessa base que se preparou para uma legislatura de negociação e compromisso, em que seria chamado a intermediar condições mínimas de estabilidade. Seria um berbicacho, mas Marcelo estava muito motivado. Só que domingo à noite o mundo mudou.
Subitamente, o desafio para o Presidente passou a ser outro. Como tornar-se parte ativa num ciclo em que António Costa vai ter poder e dinheiro para fazer o que quiser sem que ele próprio se veja forçado a assumir, a partir de Belém, uma atitude de oposição ou de contrapoder similar à que Mário Soares assumiu na segunda maioria absoluta de Cavaco Silva e que Marcelo sempre disse não caber no seu fato? No rescaldo eleitoral, na SIC, os comentadores, bons conhecedores do Presidente, dividiram-se: José Miguel Júdice falou de um Marcelo perdedor que inevitavelmente verá o seu “poder de influência” mirrar, restando-lhe ser “rei”; Luís Marques Mendes antecipou um Presidente da República “impulsionador de reformas”, que pode exercer pressão sobre um Governo a quem a maioria absoluta retira desculpas para não as fazer. E no Palácio de Belém, embora reconhecendo que Marcelo deixa cair o sonho de ainda coabitar com a sua família política no poder, alertam que essa está longe de ser a sua maior frustração. Há dois anos foi ele quem previu uma “crise profunda e duradoura na direita”, que não lhe cabia resolver.
“Frustrante, isso sim, seria passar 10 anos em Belém sem ver o país avançar”, comentam na Presidência. E sendo certo que António Costa tem condições políticas para mexer no que entender, a Marcelo caberá manter “uma vigilância exigente e muito ativa” sobre a ação do Governo. Fazendo pressão para que a legislatura não se limite a gastar dinheiro dos fundos europeus que vão chover de Bruxelas, mas tenha impulso reformador para além disso, e mantendo olho vivo sobre excessos e tentações próprios das maiorias absolutas. Aqui, o Presidente contará com todos as forças políticas e com a sociedade civil para o contraditório que sabe ter que ser reforçado.
Como pano de fundo para este novo ciclo, o PR conta com a sua arma predileta: a proximidade do povo, que lhe tem assegurado índices de popularidade ímpares e que usará sempre que necessário — uma palavra sua contra o Governo alastrará como um fósforo. O poder da palavra será usado no registo habitual — qualquer saída à rua dá para falar de tudo, e agora por maioria de razão. As Presidências Abertas — que com Marcelo se chamam Portugal Próximo — também deverão voltar. A rua voltará a ser um palco. E o Palácio de Belém receberá meio mundo, aberto a ouvir tudo e todos e focado em garantir que nos próximos quatro anos os socialistas não desperdiçarão a “oportunidade única” de que o PR está cansado de falar.
Sem constrangimentos da ‘geringonça’ e sem dependências de arranjos partidários, Marcelo Rebelo de Sousa espera que este novo ciclo confirme que as eleições antecipadas que decidiu convocar valeram a pena. Para o país e, já agora, também para a imagem com que ele próprio terminará os 10 anos em Belém. Para o primeiro-ministro, esta também será uma legislatura decisiva para que a sua década a governar o país tenha mais para contar do que a devolução dos cortes da troika e uma dificílima gestão da pandemia. O que leva um dos conselheiros do Presidente a concluir que “um e outro precisam que isto corra bem”, “eles estão os dois a jogar como ficam para a História” — no fundo, ambos à procura de reforçar uma marca.
“Costa convocou os demónios”
Os últimos seis anos falam de uma coabitação globalmente pacífica, com momentos de alta tensão, encontros, desencontros, alguma competição, mas indisfarçável respeito mútuo. E, a menos que António Costa desenterre o sonho de pensar na Europa em 2024 (hoje parece absurdo, mas não é impossível), irão em dupla até ao fim, confortados por bases de apoio que são em grande parte coincidentes. Ao contrário do que acontecia com Cavaco e Soares, em que o primeiro-ministro de direita e o PR de esquerda representavam maiorias opostas, António Costa foi eleito no domingo por uma maioria mais de acordo com a que há um ano reelegeu Marcelo. Ambos foram reeleitos ao centro e é ao centro que tentarão fazer o país avançar.
A cumplicidade pessoal entre ambos firmada há muitos anos pode ajudar. “Eles têm uma boa relação, respeitam-se e já levam uma longa história juntos”, diz um amigo do PR. Enquanto outro ironiza que, não sendo minimamente previsível qualquer problema institucional entre ambos, não é líquido que tudo sejam rosas. Até porque, “quando o António Costa na campanha disse que a maioria absoluta não era um perigo porque o Presidente da República estaria cá para travar excessos, o que ele fez foi convocar os demónios”. E se os segundos mandatos presidenciais deixam sempre os chefes de Estado mais libertos, um segundo mandato com um Governo “absoluto” é um campo aberto à imaginação presidencial.
Que o Presidente perde poderes é inequívoco, a começar pelo poder de vetar leis. Lembram-se da guerra das propinas no tempo de Cavaco Silva? Soares vetou o decreto do Governo que tinha incendiado as ruas com poderosas manifs e um decreto do Governo vetado morre. Mas Cavaco torneou a questão e mandou o mesmo diploma para o Parlamento, onde a maioria absoluta o aprovou. Soares voltou a vetar. Mas um veto a um diploma do Parlamento é ultrapassado desde que uma maioria volte a aprovar a lei. E as maiorias absolutas chegam para tudo. O que exige muito engenho e arte ao Presidente da República.
Desafios à parte, o que não merece dúvidas em Belém é que a decisão de convocar eleições antecipadas foi ganha por Marcelo. “Não faz sentido falar de um perdedor quando as eleições cumpriram três dos objetivos desejados pelo PR ao ter dissolvido o Parlamento”, sublinham. E quais foram os ganhos de causa? Passou a haver estabilidade e previsibilidade políticas para quatro anos; a ‘geringonça’, que Marcelo considerara esgotada, ficou sem condições para ser reabilitada e o epicentro da governação transferiu-se da esquerda para o centro (António Costa liberto do PCP e do BE é visto como um socialista muito moderado). Tudo condições vistas pelo Presidente como essenciais para que o país possa avançar e recuperar economicamente. Crescer mais do que a média europeia é uma meta, e Marcelo não vai largar o tema. A sua agenda não está fechada, mas as suas prioridades são conhecidas: combate à pobreza e desigualdades, combate à corrupção, crescimento económico, Administração Pública, educação, regionalização… Em silêncio desde a noite em que o mapa do país ficou pintado de cor-de-rosa, o Presidente continuará recatado até dar posse ao novo Executivo, algures na terceira semana do mês, e nem tem agenda prevista, nem saídas do palácio, quanto muito um salto a França para uma iniciativa de âmbito cultural. O discurso que fará na posse do Governo ‘absoluto’ já lhe fervilha na cabeça. E o estado de espírito, segundo confidentes e amigos com quem tem falado nestes dias, é “vivíssimo”. Quatro anos de maioria absoluta vão obrigá-lo a reinventar-se. E ter que se reinventar na reta final da sua carreira política (Marcelo deixará Belém em 2026) é um desafio à altura de um Presidente que gosta (e precisa) muito pouco de dormir.
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