quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Cavaco Silva:Mas, desta vez, o assunto atingiu as raias da nossa indignação.

Baptista Bastos sobre Cavaco Silva
  
  «O dr. Cavaco consumiu vinte minutos, no Centro Cultural de Belém, a
 esclarecer os portugueses que não havia português como ele. Os
 portugueses, diminuídos com a presunção e esmagados pela soberba,
 escutaram a criatura de olhos arregalados. Elogio em boca própria é
 vitupério, mas o dr. Cavaco ignora essa verdade axiomática, como,
 aliás, ignora um número quase infindável de coisas.
O discurso, além de tolo, era um arrazoado de banalidades, redigido
 num idioma de eguariço. São conhecidas as amargas dificuldades que
 aquele senhor demonstra em expressar-se com exactidão.
Mas, desta vez, o assunto atingiu as raias da nossa indignação.
Segundo ele de si próprio diz, tem sido um estadista exemplar, repleto
de êxitos políticos e de realizações ímpares.
E acrescentou que, moralmente, é inatacável..
O passado dele não o recomenda. Infelizmente. Foi um dos piores
 primeiros-ministros, depois do 25 de Abril. Recebeu, de Bruxelas,
 oceanos de dinheiro e esbanjou-os nas futilidades de regime que,
 habitualmente, são para "encher o olho" e cuja utilidade é duvidosa.
 Preferiu o betão ao desenvolvimento harmonioso do nosso estrato
 educacional; desprezou a memória colectiva como projecto ideológico,
 nisso associando-se ao ideário da senhora Tatcher e do senhor Regan;
 incentivou, desbragadamente, o culto da juventude pela juventude,
 característica das doutrinas fascistas; crispou a sociedade portuguesa
 com uma cultura de espeque e atrabiliária e, não o esqueçamos nunca,
 recusou a pensão de sangue à viúva de Salgueiro Maia, um dos mais
 abnegados heróis de Abril, atribuindo outras a agentes da PIDE, "por
 serviços relevantes à pátria."  A lista de anomalias é medonha.
Como Presidente é um homem indeciso, cheio de fragilidades e de
 ressentimentos, com a ausência de grandeza exigida pela função. O
 caso, sinistro, das "escutas a Belém" é um dos episódios mais vis da
 história da II República.  Sobre o caso escrevi, no Negócios, o que tinha
de escrever.  Mas não esqueço o manobrismo nem a desvergonha,
minimizados por uma Imprensa minada por simpatizantes de jornalismos
e por estipendiados inquietantes. Em qualquer país do mundo, seriamente
emocrático, o dr. Cavaco teria sido corrido a sete pés.
O lastro de opróbrio, de fiasco e de humilhação que tem deixado atrás de si, chega para acreditar que as forças que o sustentam, a manipulação a que os cidadãos têm sido sujeitos, é da ordem da mancha histórica.
E os panegíricos que lhe tecem são ultrajantes para aqueles que o antecederam
em Belém e ferem a nossa elementar decência.
É este homem de poucas qualidades que, no Centro Cultural de Belém,
teve o descoro de se apresentar como símbolo de virtudes e sinónimo de imputabilidade.
É este homem, que as circunstâncias determinadas pelas torções da História alisaram
um caminho sem pedras empurraram para um destino que não merece.
Triste República, nas mãos de gente que a não ama, que a não desenvolve, que
a não resguarda e a não protege!
Estamos a assistir ao fim de muitas esperanças, de muitos sonhos acalentados,
e à traição imposta a gerações de homens e de mulheres.
É gente deste jaez e estilo que corrói os alicerces intelectuais, políticos e morais
de uma democracia que, cada vez mais, existe, apenas, na superfície.
O estado a que chegámos é, substancialmente, da responsabilidade deste cavalheiro
e de outros como ele. Como é possível que, estando o País de pantanas, o homem que se apresenta
como candidato ao mais alto emprego do Estado, não tenha, nem agora nem antes,
actuado com o poder de que dispõe?
Como é possível?  Há outros problemas que se põem: foi o dr. Cavaco que escreveu
o discurso?  Se foi, a sua conhecida mediocridade pode ser atenuante.
Se não foi, há alguém, em Belém, que o quer tramar.
Um amigo meu, fundador de PSD, antigo companheiro de Sá Carneiro eleitor omnívoro de literatura de todos os géneros e projecções, que me dizia:
"Como é que você quer que isto se endireite se o dr. Cavaco e a
 maioria dos políticos no activo diz 'competividade' em vez de
 'competitividade' e julga que o Padre António Vieira é um pároco
de qualquer igreja?"

 
Pessoalmente, não quero nada. Mas desejava, ardentemente desejava, ter um Presidente da República que, pelo menos, soubesse quantos
cantos tem "Os Lusíadas."»

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