Fátima (1): Aparições ou visões?
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P. Gonçalo
Portocarrero de Almada Seguir
29/4/2017,
6:581.374
Na Cova da Iria os pastorinhos
tiveram visões e não aparições, mas o valor não é menor porque, como notou
Bento XVI, visões têm uma força de presença tal que equivalem à manifestação
externa sensível.
Ainda não foi o centenário da
primeira aparição de Nossa Senhora em Fátima e já abundam as alegadas
‘desmitificações’ do fenómeno ocorrido na Cova da Iria, agora reduzido a uma
mera narrativa, que cada qual reinterpreta a seu bel-prazer. Os factos
ocorreram de 13 de Maio a 13 de Outubro de 1917, tendo por protagonistas três
crianças: os irmãos Francisco e Jacinta Marto, que o Papa Francisco vai muito
felizmente canonizar no próximo dia 13, e a prima deles, Lúcia dos Santos, que
foi a relatora das aparições.
Para alguns, tudo não passou de um
embuste político-religioso, para que foram aliciadas umas criancinhas
analfabetas que, a troco de sabe-se lá o quê, se prestaram a ser videntes de
mirabolantes aparições celestiais. Para outros, é evidente que a manobra teve
mãozinha clerical e intenção marcadamente antirrepublicana, em tempos em que a
Igreja Católica era ferozmente perseguida pelos Afonsos Costas deste país.
Também os há que, embora afirmando-se fiéis, olham com desdém para este tipo de
fenómenos, que reprovam em nome da sua impoluta racionalidade, mais
livre-pensadora do que verdadeiramente católica. É caso para perguntar: afinal,
em que ficamos?!
Quem ler as Memórias da Irmã Lúcia, a
vidente que sobreviveu e relatou os acontecimentos extraordinários ocorridos na
Cova da Iria em 1917, percebe de imediato que, se alguma pressão sofreram
aquelas três crianças, quer por parte do seu pároco, quer ainda por parte das
suas famílias – que, para o efeito, até recorreram a vias de facto! – foi
precisamente no sentido de as obrigar a desmentir as aparições. Também as
zelosas autoridades públicas tudo fizeram para obrigar os videntes a se desdizerem
ou, pelo menos, revelarem o segredo que lhes tinha sido dito pela sua celestial
interlocutora.
A própria Igreja portuguesa, de
início, não reagiu positivamente às aparições. Só a 13 de Maio de 1922 se
iniciou a investigação canónica relativa aos acontecimentos de Fátima, que
concluiu oito anos e meio depois, a 13 de Outubro de 1930, com a aprovação do
culto e das aparições, que não constituem, contudo, matéria de fé.
Neste sentido, o Padre Anselmo
Borges, em entrevista ao Expresso, a 16-4-2017, afirmou: “Posso ser um bom
católico e não acreditar em Fátima, porque não é um dogma”. É verdade que
Fátima não é, nem nunca poderá ser, um dogma, mas é pouco provável que possa
ser um “bom católico” quem não aceita o veredicto da hierarquia eclesial em
relação a estas aparições, até porque a totalidade da mensagem atribuída à
‘Senhora mais brilhante do que o sol’ é de uma total e irrepreensível coerência
evangélica. Aliás, nenhuma revelação particular, como é o caso, pode ser
reconhecida pela Igreja se não for absolutamente coincidente com a fé católica.
O P. Anselmo Borges igualmente
declarou: “É preciso também distinguir aparições de visões. É evidente que
Nossa Senhora não apareceu em Fátima. Uma aparição é algo objetivo. Uma
experiência religiosa interior é outra realidade, é uma visão, o que não
significa necessariamente um delírio, mas é subjectivo.”
A distinção entre aparições e visões
não é nenhuma novidade pois, como recordou Bento XVI, quando era cardeal
perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, “a antropologia teológica
distingue, neste âmbito, três formas de percepção ou «visão»: a visão pelos
sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e a
visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa, intellectualis). É claro que, nas visões
de Lourdes, Fátima, etc, não se trata da percepção externa normal dos sentidos:
as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante,
como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa. Isto é bem evidente, por
exemplo, no caso da visão do inferno (descrita na primeira parte do «segredo»
de Fátima) ou então na visão descrita na terceira parte do «segredo», mas
pode-se facilmente comprovar também noutras visões, sobretudo porque não eram
captadas por todos os presentes, mas apenas pelos «videntes». De igual modo, é
claro que não se trata duma «visão» intelectual sem imagens, como acontece nos
altos graus da mística. Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a
percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que
equivale à manifestação externa sensível” (Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé, Comentário teológico, in A mensagem de Fátima, 26-6-2000).
Assim sendo, não oferece dúvidas que,
de facto, Nossa Senhora não apareceu, em sentido técnico, na Cova da Iria. Que
se tenha tratado de uma visão e não de uma aparição não permite, contudo,
afirmar que foi, como disse o P. Anselmo Borges, apenas uma “experiência
religiosa interior” dos videntes, nem que, mesmo não sendo “necessariamente um
delírio”, teria sido contudo algo meramente “subjectivo”.
Bento XVI, no seu já citado
comentário teológico à mensagem de Fátima, esclarece: “Este ver interiormente
não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da
imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de
algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o
não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos
internos». Trata-se de verdadeiros «objectos» que tocam a alma, embora não
pertençam ao mundo sensível que nos é habitual”. Atente-se aos termos usados
pelo Cardeal Ratzinger para descrever as ‘aparições’ de Fátima: não “se trata
de fantasia”, nem de “uma expressão da imaginação subjectiva”, mas de “algo
real”, de “verdadeiros ‘objectos’”!
Prossegue Bento XVI, no seu
Comentário teológico: “Como dissemos, a «visão interior» não é fantasia” – ao
contrário do que o termo ‘visão imaginativa’, usado por D. Carlos Azevedo, na
sua entrevista ao Público, no passado dia 21, poderia levar a crer – “mas uma
verdadeira e própria maneira de verificação. Fá-lo, porém, com as limitações
que lhe são próprias. Se, na visão exterior, já interfere o elemento
subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do
filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na visão
interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se trata de realidades que
por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte”.
Nada tem de muito surpreendente este
esclarecimento se se tiver em conta que, também no Evangelho, se recorre com
frequência a metáforas que facilitam a compreensão dos mistérios da fé: é óbvio
que o inferno não pode ser fogo, nem o céu um banquete e, quando Jesus diz que
ele é “a videira verdadeira” (Jo 15, 1), não se está a atribuir a si mesmo uma
natureza vegetal, mas apenas a sugerir que, da mesma forma como os ramos estão
unidos ao tronco e dele recebem a vida, assim também os cristãos em graça estão
enxertados em Cristo, de quem lhes vem a energia que alimenta a sua vida
sobrenatural.
“Isto” – prossegue o Cardeal
Ratzinger – “é patente em todas as grandes visões dos Santos; naturalmente vale
também para as visões dos pastorinhos de Fátima. As imagens por eles delineadas
não são de modo algum mera expressão da sua fantasia, mas fruto duma percepção
real de origem superior e íntima”. Portanto, se se trata, como explica Bento
XVI, de uma “percepção real de origem superior e íntima” e “não são de modo
algum mera expressão da sua (deles, pastorinhos) fantasia”, impõe-se a
conclusão óbvia: o seu valor não é menor do que se se tivesse tratado, em
sentido técnico, de autênticas aparições, pois “tem uma força de presença tal
que equivale à manifestação externa sensível”. Razão que explica também que a Conferência
Episcopal Portuguesa, na sua nota pastoral sobre o centenário de Fátima (Fátima, Sinal de
Esperança para o nosso tempo, Carta pastoral no Centenário das Aparições de
Nossa Senhora em Fátima, 2016), mantenha o uso do termo
“aparições”, mesmo não sendo o tecnicamente mais preciso. Também o inquilino se
refere à casa em que vive como sendo sua, embora juridicamente não seja o seu
proprietário.
Como sintetizou o então Cardeal
Secretário de Estado, Ângelo Sodano, na celebração eucarística da beatificação
de Jacinta e Francisco Marto, na Cova da Iria, a 13-5-2000, presidida por São
João Paulo II, “a visão de Fátima refere-se sobretudo à luta dos sistemas ateus
contra a Igreja e os cristãos e descreve o sofrimento imane das testemunhas da
fé do último século do segundo milénio. É uma Via Sacra sem fim, guiada pelos
Papas do século vinte.”
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