Fotografia Nuno Botelho Texto Ana Batalha Oliveira e Miguel Prado
Étriste”, desabafa André Cruz, engenheiro mecânico, 40 anos de vida, 14 de trabalho na central a carvão do Pego. A máscara, os óculos de proteção e o capacete conseguem tapar-lhe o rosto, mas a voz, meio trémula, não consegue esconder uma certa emoção quando, no frio entardecer junto aos carris, falamos deste fim de linha. Um adeus aos vagões que diariamente chegavam ao Pego e voltavam para Sines. Um ponto final para centena e meia de trabalhadores que hoje não sabem o que farão amanhã.
Foi pelas 7h15 da manhã de sexta-feira, 19 de novembro, que a central termoelétrica, em operação desde 1993, produziu o seu último megawatt hora (MWh) de eletricidade proveniente da queima de carvão. Vários trabalhadores que estavam na central nesse turno fizeram questão de gravar em vídeo os últimos minutos de vida do projeto. No parque na área nascente do complexo da central sobrou uma mancha negra, mas desapareceram os pedaços de energia fóssil que outrora ali se acumulavam à espera de serem recolhidos para os moinhos, antes de serem queimados para gerar energia elétrica.
A central explorada pela Tejo Energia vê o seu contrato de longo prazo expirar a 30 de novembro. Nos últimos meses os acionistas da empresa não se entenderam sobre o futuro a dar às instalações. O acionista maioritário, a Trustenergy (um consórcio que junta a francesa Engie e a japonesa Marubeni), defende um projeto de transição que passa pela torrefação de biomassa, que permitiria continuar a aproveitar as instalações atuais com necessidades mínimas de atualização tecnológica. O acionista minoritário, a Endesa, discorda e prefere que o ponto de ligação à rede sirva para produzir energia solar em larga escala, e aproveitá-la para produzir hidrogénio verde.
Encerrada a central a carvão, o Pego prosseguirá com a “irmã mais nova”, uma central de ciclo combinado que desde 2009 produz eletricidade a partir do gás natural. Esta infraestrutura, detida pela Elecgas (uma empresa detida em partes iguais pela Trustenergy e Endesa), prosseguirá pelo menos até 2035.
É aqui o fim da linha. Quando a central estava mais ativa, era alimentada por uma dezena de navios que descarregavam carvão em Sines, que daí seguia para o Pego numa linha de caminhos-de-ferro dedicada. Chegaram a ser três a quatro comboios por dia. Segundo André Cruz, que durante anos trabalhou nas equipas de manutenção da central e que agora é chefe de produção operacional, as entregas de carvão costumavam acontecer à meia-noite, às oito horas da manhã e às quatro da tarde.
A última entrega de carvão foi já em janeiro de 2020. Desde então a instalação de recolha não mais funcionou. Os vagões, identificados com a marca Tejo Energia, permanecem estacionados na linha no complexo da central.
O carvão que chegava ao Pego era armazenado num espaço a céu aberto, que chegava a acumular montes com 10 metros de altura, o equivalente a um edifício de três andares. O carvão era recolhido e transportado por tapetes até aos moinhos que tratavam de o reduzir a pó para ser queimado. O procedimento era automatizado e gerido a partir da sala de comando da central. O depósito está agora vazio.
A vasta área em que o carvão era depositado no Pego está agora coberta de pó negro. Os responsáveis da Tejo Energia admitem que o uso continuado daqueles terrenos para armazenar carvão possa ter deixado alguma contaminação numa camada muito superficial, de 20 a 30 centímetros de profundidade.
Essa camada de terra terá de ser retirada, no quadro das operações de descontaminação que hão-de ser levadas a cabo, mas ainda sem data marcada. Os testes que a empresa vem fazendo no local e nas imediações da central indicam que não houve até hoje contaminação dos lençóis freáticos associada ao carvão.
Na nossa visita à central do Pego, há dias, começámos pelo exterior, mas visitámos também o coração desta termoelétrica. Carlos Ribeirinho, diretor executivo da Pegop, a empresa que faz a operação e manutenção da central, guia-nos no percurso pelas instalações. Pergunta-nos se já havíamos visitado alguma outra termoelétrica a carvão, para nos asseverar que a do Pego é particularmente limpa, muito mais limpa a comparar com outras.
Carlos Ribeirinho está ligado à central do Pego desde 2004. Vive em Lisboa, mas desloca-se à termoelétrica todas as semanas. “Há aqui uma nostalgia, uma tristeza de chegarmos ao fim de um ciclo”, aponta.
A central tem dois grupos geradores, com uma potência total de 628 megawatts (MW). O primeiro entrou em funcionamento em março de 1993, o segundo em outubro de 1995. A construção da central foi viabilizada por um contrato de aquisição de energia (CAE), que garantia uma remuneração pré-determinada para a central, dando aos investidores o conforto de que teriam o seu retorno assegurado
O CAE foi a forma de captar investimento estrangeiro, que veio concorrer com uma hegemónica EDP. Instrumento semelhante foi concedido, também na década de 1990, à Turbogás (do grupo Trustenergy), para a central de ciclo combinado da Tapada do Outeiro.
Multiplicam-se os painéis, os computadores, as luzes e as cadeiras desocupadas, naquele que era o cérebro da operação. Daqui, vigiavam-se todos os processos, tinha-se o poder de interrompê-los ou pô-los em marcha, e, numa lógica mais complexa, assegurava-se o equilíbrio entre o calor da caldeira, o vapor produzido e a energia gerada, para que não existissem percalços.
Um dos poucos trabalhadores que ainda marcam presença nesta sala explica-nos que, sendo a central termoelétrica do Pego a mais recente do país, beneficiou do conhecimento que se foi acumulando em Portugal. “Temos um projeto aqui muito acima da maior parte das centrais da Europa”, garante.
No final do nosso percurso, encontramos o coração da fábrica. É aqui, num amplo pavilhão, que estão os dois grupos geradores da central, cada um com uma potência de 314 MW. E era aqui que era gerada a eletricidade a partir das turbinas que giravam a 3000 rotações por minuto, movidas pelo quente vapor (530 graus) resultante do aquecimento de água na caldeira da central, graças à queima do carvão. Era aqui o lugar de onde partia a energia elétrica para alimentar as casas dos portugueses
Carlos Ribeirinho, 52 anos, trabalha na central do Pego desde 2004. A sua idade está em linha com a idade média dos trabalhadores da central. A partir de 30 de novembro, o futuro é incerto.
“Uma pessoa com 35 anos muda-se. Agora, com 52 anos, tem a vida de tal forma enraizada aqui que é difícil mudar. Por muito qualificadas que sejam, a maioria das empresas não empregam com estas idades”, explica o presidente executivo da Tejo Energia, José Grácio, ao mesmo tempo que se revela “cético” de que os critérios avançados pelo Governo no concurso para a reconversão da central resultem numa proteção efetiva dos trabalhadores.
André Cruz, residente em Abrantes, trabalha nesta central desde que saiu da faculdade. Está confiante de que, tendo em conta os seus 40 anos, poderá encontrar um novo emprego, se a futura solução para a central não abarcar os atuais trabalhadores. Mas tem esperança de que a força de trabalho se consiga manter, num cenário em que o futuro dono aposte na biomassa.
Não esconde as suas reticências quanto à forma como o país abraçou a transição energética, assinando a certidão de óbito do carvão. “A transição energética? Tinha que ser mais gradual. Tinha que ser uma coisa mais ponderada”, observa.
Da central vê-se a vastidão no horizonte, e, ao mesmo tempo, a ausência de algo palpável. O concurso que definirá o futuro da central está em aberto (fechado mesmo está o capítulo do carvão: o projeto de reconversão terá obrigatoriamente de recorrer a energias renováveis), e assim vai permanecer até 17 de janeiro. Depois, terá ainda de decorrer o tempo necessário para avaliar as propostas entregues, apesar de as operações cessarem já no final de novembro.
O maior acionista, a Trust Energy, via na biomassa a melhor solução transitória, para aproveitar a infraestrutura e o conhecimento dos trabalhadores. Esperava manter desta forma 130 dos 150 funcionários. A esta tecnologia, queria juntar a energia solar e, num futuro mais distante, passar para a aposta nos combustíveis sintéticos ou no biometano. Esta última parte do projeto não está completamente definida. Foi este o plano apresentado ao Governo em julho, em resposta a uma solicitação do Executivo que havia chegado em maio. Mas a hipótese de um concurso já estava viva na esfera pública desde junho do mesmo ano, explicam os responsáveis, que não veem justificação para o Governo ter avançado com esta opção.
O acionista minoritário, a Endesa, quer investir aqui 600 milhões de euros no armazenamento através de baterias, no hidrogénio verde e numa central solar. Os restantes projetos e concorrentes são ainda uma incógnita.
Das duas torres de refrigeração que marcam a paisagem, já não sai mais o vapor que lhes adornava o topo quando a central a carvão estava em operação.
Os gases prejudiciais, como o dióxido de carbono, invadem a atmosfera a partir de outra torre, mais fina e de listas vermelhas, de forma invisível. O negrume das cinzas é evitado no Pego porque são recolhidas para serem reaproveitadas. Estas, assim como o gesso e a escória, que são subprodutos do processo de produção de eletricidade a partir do carvão, ainda poderão ser vendidos, agora que o principal negócio da central cessou.
Apesar do fim da produção a carvão, e mesmo que o projeto de produção a partir de biomassa não avance, as duas grandes colunas de refrigeração não serão implodidas, por se encontrarem demasiado próximas da central de ciclo combinado (em operação pelo menos até 2035) da Elecgas. O mesmo é válido para a chaminé de mais de 200 metros que durante anos emitiu CO2 para a atmosfera: continuará a fazer parte da paisagem.
Nas costas de José Grácio, estende-se inerte a central à frente da qual esteve nos últimos anos. Conta que, tecnicamente, era possível manter a operação por mais duas décadas, mas admite que, economicamente, não consegue avaliar o tempo que lhe restaria. Não tendo licença para continuar com a produção de eletricidade a carvão, tem mesmo de ficar por aqui.
O dia final “é um dia muito triste, e não tem nada a ver com o fim do carvão. As coisas podiam ter sido feitas de forma a que houvesse uma transição energética que levasse as pessoas. Que ninguém fosse deixado para trás”, defende José Grácio.
Agora, é do lado do Governo que estarão os esboços daquele que será o desenho escolhido para o futuro da central.
Sem comentários:
Enviar um comentário