sábado, 8 de janeiro de 2022
RENDEIRO - OS 3 PROCESSOS EM QUE FOI CONDENADO - EXPRESSO | 8 JANEIRO 2022
SOCIEDADE
Mas, afinal, o que é que este homem fez? Os três processos em que Rendeiro foi condenado
Na segunda-feira, João Rendeiro vai responder a esta pergunta do juiz: “Aceita ser extraditado?” Mas, afinal, por que foi condenado e quais foram exatamente os seus crimes. Eis os três processos
09:45 8 Janeiro, 2022 | Expresso
Esta segunda-feira, no Tribunal de Verulam, João Rendeiro vai saber se continua preso enquanto espera pelo pedido de extradição de Portugal. E no dia 20 vai ter de responder a uma pergunta do juiz Rajesh Parshotam determinante para o seu futuro próximo: “Aceita ser extraditado?” Se disser que sim, vai imediatamente para Portugal e começará a cumprir a primeira pena a que foi condenado. Se disser que não, dará início a um processo demorado que terá certamente o mesmo fim. Mas, afinal, porque é que a Justiça portuguesa o condenou em três processos diferentes? Quais são os verdadeiros crimes do ex-banqueiro?
Processo 7447/08.2TDLSB
Pena: 5,8 anos de prisão
Crimes: falsidade informática e falsificação de documento autêntico
Tradução: falsificou extratos das contas dos clientes para disfarçar prejuízos; passou prejuízos do banco para as contas dos clientes
O nome terá sido inspirado no livro de Richard Bach “Fernão Capelo Gaivota”, uma fábula dos anos 70 sobre autoconhecimento e como atingir a perfeição. Para disfarçar as perdas nas contas de ativos de retorno garantido dos clientes do BPP, João Rendeiro e a sua equipa conceberam “Leaving Seagull”, uma linha de cálculo inserida nos extratos das contas bancárias dos clientes que disfarçava informaticamente qualquer perda e aparecia como se fosse um título de investimento. Logo no início da atividade, para atrair investidores, o BPP criou um produto financeiro de retorno absoluto que garantia que, no prazo de um ano, o investimento seria devolvido com um juro mínimo a rondar os 5%. O investimento era feito em obrigações que têm um período de maturação mínimo de três anos; para evitar que os clientes retirassem o dinheiro antes do fim deste período, Rendeiro e o resto da Comissão Executiva (Fezas Vital e Paulo Guichard) ordenaram que se introduzisse o “Leaving Seagull” de modo a disfarçar qualquer oscilação no valor da carteira de obrigações que eram negociadas através de offshores.
No final de 2002, um grupo de sete diretores alertou a Comissão Executiva para os perigos deste veículo de fachada, mas, segundo o acórdão que condenou os três administradores, as ordens de Rendeiro foram claras: o “Leaving Seagull” era para continuar. Fernando Lima, um dos diretores que se opôs, foi promovido a administrador e terá sido ele a desenvolver as ferramentas necessárias. Já em 2007, um grupo de trabalho voltou a recomendar o fim do “Leaving Seagull”, o que foi novamente rejeitado pela administração de Rendeiro.
Este instrumento também serviu para transferir fundos das contas de uns clientes para as de outros, como forma de tapar prejuízos. Num dos casos citado pelo acórdão, o banco usou cerca de €4 mil da conta de um cliente para garantir a outro investidor que a mesma não estava deficitária.
Além disso, o banco não informou o Banco de Portugal das condições que oferecia e, inclusivamente, omitiu na documentação enviada ao regulador o facto de oferecer retorno num ano. Esta informação também foi omitida à Deloitte, que fazia auditorias anuais às contas do banco.
Mais: segundo o acórdão, em setembro de 2008, quando a Lehman Brothers faliu, o prejuízo do BPP chegou aos €10 milhões. Por ordem de Rendeiro, este valor foi transferido para as contas dos clientes.
Depois disso, um investimento ruinoso em ações do BCP provocou mais um prejuízo de €40 milhões. E, para finalizar, o BPP perdeu outros €40 milhões em sociedades offshore que, para efeitos de contabilidade, não existiam.
Um alto funcionário do banco contou em tribunal que, num dia de fim de semana em que todos tiveram de fazer serão, entrou numa sala escura para “fechar um bocadinho os olhos”. Lá dentro estava Paulo Guichard, braço-direito de Rendeiro, que lhe perguntou “se não havia alguma forma” de pôr “aquela parte, ou aqueles prejuízos, ou parte dos prejuízos em clientes”.
A testemunha respondeu que era “um disparate”, ainda por cima “ilegal”. Guichard desculpou-se: “É o cansaço a falar.” Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, Guichard garantiu aos diretores que os prejuízos seriam assumidos pelo banco. À hora do almoço, Rendeiro chamou a Comissão Executiva para lhe comunicar que o prejuízo passaria para as contas dos clientes.
Uma denúncia anónima levou a uma inspeção ao banco, e Joana Peralta, diretora da área do Retorno Absoluto, denunciou o esquema às autoridades de supervisão bancária. As perdas foram calculadas em €420 milhões, e os investidores conseguiram, graças a um fundo criado especialmente para o efeito, recuperar 90% do dinheiro investido, 10 anos depois. Antes da derrocada do banco, Rendeiro retirou €1,3 milhões que tinha numa conta com a mulher, Maria de Jesus.
O primeiro tribunal que condenou Rendeiro, Guichard e Fezas Vital suspendeu as penas dos arguidos, tendo em conta que não tinham antecedentes e porque já tinham passado anos desde a altura dos factos. O Tribunal da Relação agravou as penas e passou-as a prisão efetiva nos casos de Rendeiro e Guichard. E é esta a pena que já transitou em julgado e que o ex-banqueiro começará a cumprir quando voltar a Portugal.
Processo 3707/09.3TDLSB
Pena: 3,5 anos de prisão
Crime: Burla qualificada
Tradução: vender obrigações de um banco já condenado a novos investidores
Depois de uma longa carreira diplomática que o levou a países como Cuba, Países Baixos ou Trinidad e Tobago, o embaixador Júlio de Sales Mascarenhas reformou-se e decidiu investir “parte” do património que tinha acumulado — especificamente, dinheiro que conseguira com a venda de uma casa da família recebida em herança. Foi contactado pela antiga gestora da conta que tinha no Barclays, que era agora private banker.
Segundo o acórdão do Tribunal Criminal de Lisboa, Eva Santo António descreveu um “banco sólido com elevado rating e rácio de solvabilidade” e convenceu de forma “agressiva” o embaixador a investir num produto de retorno garantido. O diplomata propôs investir €50 mil, a private banker explicou-lhe que o mínimo eram €250 mil, mas que ao fim de seis meses poderia recuperar o dinheiro com um lucro de 1,75%. Isto apesar do prazo de maturidade do pacote de obrigações ser de 10 anos. Júlio Mascarenhas disse que sim. E foi convidado para um almoço no banco “presidido pelo arguido Paulo Guichard Alves”, com “mais de uma dúzia de convidados”, que teve como entrada “uma apresentação” em que o BPP “era retratado como um banco seguro e bem gerido”.
Seis semanas depois de ter feito o investimento, em novembro de 2008, o embaixador “sofreu um tremendo abalo emocional quando viu na televisão o arguido João Rendeiro anunciar as graves dificuldades financeiras da instituição bancária a que presidia”. Além de ter agravado os problemas de tensão e diabetes de que já sofria, o embaixador só recuperou €25 mil dos €250 mil que investiu.
E porque é que os três administradores do banco foram condenados a penas de prisão efetiva pelo crime de burla qualificada?
No verão de 2008, mesmo conhecendo “a debilidade da situação patrimonial e financeira do banco” — e sabendo que havia a “séria probabilidade de não poderem assumir o retorno das quantias que os investidores lhes viessem a entregar” —, a Comissão Executiva decidiu emitir €100 milhões em obrigações para “reforçar” os fundos que detinha. Mas omitiu a real situação das contas não só ao Banco de Portugal mas também aos clientes e até aos private bankers como Eva Santo António, que se limitou “a cumprir o papel que esperavam dela”.
Para os juízes, os três condenados “quiseram e conseguiram criar um artifício com o qual enganaram Júlio de Sales Mascarenhas, levando-o a comprar obrigações subordinadas”. “A emissão de obrigações subordinadas, com ocultação da real situação do banco, constituiu uma manobra fraudulenta que permitiu enganar alguns incautos clientes que, obviamente, não subscreveriam as obrigações em causa se tivessem acesso à informação da real situação do banco.”
Em setembro de 2021, já em fuga, João Rendeiro soube que foi condenado num terceiro processo. Ainda não recorreu desta decisão.
Processo 5037/14.0TDLSB
Pena: 10 anos de prisão
Crimes: Fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado, branqueamento
Tradução: Rendeiro e os seus principais colegas de administração atribuíram a si próprios prémios e outras remunerações, por via de esquemas que passavam por paraísos fiscais, em que não houve declaração de impostos e que eram verbas que pertenciam ao BPP
Tejo é o rio que banha Lisboa, Tagus é a tradução em inglês. Foi através de um veículo com este nome que João Rendeiro conseguiu receber parte de verbas do Banco Privado Português que não lhe eram devidas. Mas, para isso, não se ficou pela capital portuguesa. Paraísos fiscais como as Ilhas Virgens Britânicas e as Ilhas Caimão e geografias como Dublin foram usados num esquema em que prémios e outras remunerações não previstos foram dirigidos aos principais nomes da instituição financeira, incluindo o seu fundador.
Foi num sistema que envolveu operações via BPP e a sua participada BPP Cayman que os homens-fortes decidiram autoatribuir-se remunerações que, para o “rosto” do banco — como chama a João Rendeiro o acórdão judicial que decidiu sobre o caso —, ascenderam a praticamente €13,6 milhões. Em prejuízos para a instituição bancária.
Prémios anuais, prémios de mandato, despesas de vida pessoal, complementos: “por comum acordo”, os gestores optaram por essa atribuição, decisão acessível pelas funções que exerciam no banco mas a que não tinham direito.
“Entre 2003 e 2008, os arguidos João Oliveira Rendeiro, Salvador Fezas Vital e António Guichard Alves […] decidiram atribuir-se complementos remuneratórios que não constariam dos recibos de vencimento emitidos pelos serviços competentes do BPP, nem da contabilidade do BPP, nem seriam declarados à administração tributária”, indica o acórdão do processo em que são acusados de fraude fiscal, branqueamento e abuso de confiança. O nome de Fernando Lopes Lima seria acrescentado a partir de 2005.
Estes pagamentos não eram reconhecidos como custos com pessoal nem passavam pela Comissão de Vencimentos, num banco em que, como dizem as juízas, “o processo decisório interno era bastante informal, assente em almoços, telefonemas, e-mails e reuniões informais”. Para o tribunal, Rendeiro foi comprando parte das obras de arte com estas verbas que obteve e que pertenciam ao banco. No caso de Fezas Vital, os fundos do BPP pagaram-lhe até um Aston Martin.
Depois de receberem as verbas, os principais responsáveis do banco de gestão de fortunas transferiram-nas para outras contas (até para Singapura e Estados Unidos) ou alteraram a titularidade, de modo a dissimular o rasto, acredita o coletivo de juízas. Havia uma intenção, diz a Justiça, de ocultar o pagamento às autoridades tributárias.
“Dados os seus sólidos conhecimentos em matéria de operações financeiras e veículos de investimento, constituiu sociedades em países e territórios com regimes de tributação privilegiada (offshores) e para aí canalizou os rendimentos ilegitimamente obtidos, do mesmo modo que os dissimulou em operações financeiras e investimentos disseminados em variados fluxos internacionais e património de entidades terceiras, com o fito de os subtrair tanto ao Fisco como à ação da Justiça”, conclui o acórdão.
Há um aspeto favorável ao ex-banqueiro: houve impostos em falta que João Rendeiro pagou, com uma declaração de substituição, ainda que não tenha saldado toda a dívida tributária. Ficaram €4,9 milhões por devolver ao Fisco português. Já a Comissão Liquidatária do BPP interpôs um pedido de indemnização civil em que Rendeiro, juntamente com os seus antigos colegas, terá de pagar €29,5 milhões pelos montantes de que se apropriaram.
No acórdão que o condena a 10 anos de prisão, em cúmulo pelos crimes cometidos, Rendeiro é fortemente criticado pelo coletivo de juízas encabeçado por Tânia Loureiro Gomes. Há uma “postura de arrogância e desvalorização”, que não mostra arrependimento, visível no facto de só ter ido a tribunal prestar declarações, não estando presente nas restantes audições. Dizem as magistradas que Rendeiro tem “uma personalidade impaciente, impulsiva de autoconvencimento e de superioridade intelectual”, que é “dominada pela ganância e pela avidez de angariação de fortuna pessoal”.
O ex-banqueiro defende-se dizendo que não mandava na gestão direta do banco desde 2005, mas o tribunal, em primeira instância, argumenta que “controlava a tomada de todas as decisões” e que “qualquer operação dependia do seu aval”. Até depois da sua saída do BPP, empurrado pelo Banco de Portugal, mantinha ainda ligação aos “elementos operacionais que lhe permitiam exercer influência no tratamento de determinados assuntos”. Aliás, houve dados novos, que foram entregues pela Comissão Liquidatária durante o julgamento, que mostraram que tinha havido alteração de dados nos sistemas informáticos e que reforçavam a acusação do Ministério Público.
O processo está ainda em primeira instância, sujeito a recursos. Rendeiro foi já condenado em processos de contraordenação do Banco de Portugal e da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), com coimas que totalizam €2,5 milhões. Ainda por pagar.
Texto: Diogo Cavaleiro e Rui Gus
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