segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

ECONOMIA | Energia: a seca, o fim do carvão e o sistema elétrico em 10 perguntas e respostas

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Foto: Getty Images ECONOMIA Energia: a seca, o fim do carvão e o sistema elétrico em 10 perguntas e respostas Apesar da seca e apesar do fecho das centrais a carvão, o sistema elétrico português tem dado resposta à procura. Preparámos um guia com uma dezena de perguntas e respostas sobre como o mercado está a funcionar, sem que nos falte a luz Share on FacebookTweet about this on TwitterShare on LinkedInEmail this to someone 17:24 7 Fevereiro, 2022 | Miguel Prado Em 2021 Portugal perdeu duas históricas centrais termoelétricas e despediu-se da produção de eletricidade a partir da queima do carvão. As centrais de Sines (EDP) e do Pego (da Tejo Energia) saíram de cena e com elas mais de 1,8 gigawatts (GW) de potência firme, um pouco menos de 10% da potência do nosso sistema elétrico. Essa desativação coincidiu com um ano especialmente seco e com uma conjuntura de preços internacionais do gás natural em níveis recorde. Embora o fecho das duas centrais seja apontado por alguns como um erro estratégico, que deixa Portugal mais sujeito à importação de eletricidade de Espanha, os números publicados pela REN e pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e a própria dinâmica de funcionamento do mercado ibérico indicam que nem as elétricas estão a produzir mais nas barragens por causa do fecho do carvão nem o abandono do carvão é a razão primordial do aumento das importações de eletricidade registado no ano passado. O Expresso compilou alguns dados sobre o funcionamento do sistema elétrico para, em 10 perguntas e respostas, ajudar a explicar a situação que temos no sistema elétrico, a importância do gás e a capacidade de resposta num país livre de carvão. 1. O principal motivo do baixo armazenamento das albufeiras é uma exploração hidroelétrica exagerada? Os números publicados pela REN mostram que a produção hidroelétrica em Portugal está em queda há quatro meses consecutivos em relação aos níveis do ano anterior (em setembro ficou 18% abaixo de igual mês de 2020, em outubro caiu 41%, em novembro baixou 45%, em dezembro encolheu 46% e em janeiro último teve uma descida homóloga de 53%). Ou seja, os dados da produção mostram que as centrais hídricas ajustaram as suas operações a um cenário de menor disponibilidade de água nas barragens. O índice de produtibilidade hidroelétrica publicado pela REN comprova que a afluência dos últimos quatro meses é inferior à média histórica para este período, limitando, portanto, a capacidade de produção das centrais hidroelétricas. 2. Todas as barragens estão com baixos níveis de armazenamento? Não. O Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) indica que a bacia do Lima tinha em janeiro 16,7% de armazenamento nas suas albufeiras (contra uma média histórica de 61,5%), e é nessa região que está instalada a central hidroelétrica do Alto Lindoso, da EDP. Mas o nível armazenado na bacia do Douro, onde estão muitas das principais barragens do país (incluindo as que a EDP vendeu à Engie), tem 56,4% de armazenamento (abaixo da média de janeiro de 69,8%). Situação menos confortável tem a bacia do Cávado, com 42% de armazenamento (a média é de 71%), mas mais confortável está a do Mondego, com 64,2% (embora aquém da média de 71,1%). Na bacia do Tejo o armazenamento está a 52,8% (a média nesta altura do ano é de 74,1%), e a do Guadiana, onde está Alqueva, apresenta uns confortáveis 76,7% (apenas ligeiramente abaixo da média de 77,6%). 3. Portugal importou mais eletricidade em 2021? Sim. Em 2021 Portugal importou 8.956 GWh de eletricidade de Espanha, mais 40% do que no ano anterior, enquanto exportou 4.201 GWh, menos 15% do que em 2020. Isso levou a que o saldo importador se cifrasse em 4.753 GWh, mais do triplo do ano anterior. Esse saldo importador equivaleu a quase 10% do consumo de eletricidade no país. 4. Foi o fecho das centrais a carvão que provocou esse aumento? O maior ou menor volume de importação depende essencialmente da dinâmica das ofertas dos produtores em Portugal e em Espanha, que competem entre si diariamente no mercado ibérico para colocar (ou não) a sua energia para o dia seguinte. Um aumento nas importações espelha a maior competitividade do preço do lado de lá da fronteira, mais do que uma escassez da oferta do lado de cá, até porque do lado de cá continuou a haver potência termoelétrica disponível para substituir o carvão (nomeadamente a das centrais a gás, mais caras, por causa do disparo na cotação do gás natural; mas também a das centrais hídricas, embora com as limitações resultantes da seca). Vale a pena notar que o volume produzido pelas centrais a carvão em Portugal era já diminuto, dada a sua reduzida competitividade, em termos de preço, face às centrais a gás e às hídricas. Em 2020 o carvão gerou 2.133 GWh, a hídrica gerou 12.198 GWh, a eólica 12.067 GWh e o gás natural 16.565 GWh. Em 2021 o carvão gerou 696 GWh, a hídrica 11.607 GWh, a eólica 12.921 GWh e o gás natural 14.646 GWh. Estes números mostram, portanto, que de 2020 para 2021 houve menos 1.437 GWh de produção a carvão em Portugal, menos 591 GWh hidroelétricos e menos 1.919 GWh nas centrais a gás. Números que mostram que as centrais a gás natural tiveram uma queda de produção maior ainda que a das centrais a carvão. As centrais a gás podiam ter sido mais utilizadas do lado português, evitando importações elétricas de Espanha, mas acabaram por ser parcialmente preteridas, em favor de uma maior utilização da capacidade existente em Espanha (que tem um mix onde entram não só centrais a gás, mas também a carvão, e energia nuclear, além de abundantes renováveis). Além disso, refira-se que no passado Portugal já teve outros anos com saldos importadores relativamente elevados. Em 2019 o saldo importador representou 7% do consumo e em 2012 ascendeu a 16%. E já nessa altura Portugal tinha ambas as centrais a carvão (Sines e Pego) operacionais. 5. Fechámos as nossas centrais para passarmos a importar eletricidade a carvão de Espanha? Não. Conforme referido acima, o fecho das centrais a carvão em Portugal baixou a respetiva produção de eletricidade em 1.437 GWh no ano passado. Já as importações de Espanha ascenderam a 8.956 GWh. Mas o mix espanhol em 2021 apenas teve 2% de carvão, o que significará que no máximo Portugal importou o equivalente a 179 GWh de eletricidade espanhola com origem no carvão. Muito longe, portanto, de cobrir ou substituir aquilo que Portugal deixou de produzir nas centrais de Sines e do Pego. A eletricidade importada de Espanha foi um “mix” juntando renováveis, centrais a gás, energia nuclear e, com apenas 2%, carvão. 6. Ao importar eletricidade de Espanha estamos a desperdiçar dinheiro? Não. O mercado ibérico funciona como um mercado comum, com livres fluxos de energia entre os dois países (embora condicionados ao limite das capacidades de interligação). O facto de importarmos eletricidade numa dada hora significa que o preço que pagamos nessa hora pela eletricidade importada é mais baixo do que o que nos custaria o mesmo volume de eletricidade produzida cá. Isso pode resultar da estratégia de gestão de carteira de quem tem centrais do lado de cá, cobrando mais para produzir a uma dada hora, mas também da maior ou menor abundância de recurso (no caso das centrais hidroelétricas) ou de eventuais indisponibilidades técnicas de parte da capacidade de geração. E ainda pode resultado, por exemplo, de a produção do lado espanhol poder ser mais barata por ter, a um dado momento, um maior volume de energia renovável a ser injetada na rede, baixando o preço do mercado grossista. Poder-se-á colocar a questão de ao estarmos a importar mais eletricidade estarmos a agravar a nossa balança comercial, mas é importante não esquecer que ao dia de hoje, e num cenário de seca, a alternativa a não importar eletricidade de Espanha seria aumentar a produção das centrais de ciclo combinado a gás natural, o que implicaria aumentar os volumes importados de gás, combustível que permanece com preços elevados nos mercados internacionais. 7. Há riscos de segurança de abastecimento associados ao fecho das centrais a carvão? O último relatório de monitorização da segurança de abastecimento do sistema elétrico nacional que a DGEG publicou, e que pode ser consultado aqui, admite que o fecho das centrais a carvão (que tinham uma potência conjunta de mais de 1.800 MW) representa um risco enquanto o complexo hidroelétrico do Tâmega, da Iberdrola, não estiver operacional. O documento admite que a segurança de abastecimento pode estar em risco e requerer “a aplicação de medidas mitigadoras para o cumprimento dos padrões de segurança de abastecimento”, mas isso será ultrapassado “com a entrada em serviço em pleno dos novos aproveitamentos hidroelétricos da bacia do Tâmega”. Em linguagem simples, a DGEG admite que num caso extremo de falha de um elemento crítico da rede (por exemplo, o abastecimento de gás natural), a potência firme e disponível para ser mobilizada a qualquer hora pode não ser suficiente para cobrir pontas de consumo. 8. Se esse risco se concretizar, o que acontece? Conforme a DGEG sugere, as medidas adicionais para colmatar uma eventual insuficiência da oferta das centrais em Portugal podem incluir a colaboração de Espanha, disponibilizando mais produção para exportar para Portugal, mas também medidas de redução da procura do lado de cá. Reduzir o consumo dos consumidores industriais será uma das vias, e fazer deslastres (cortes) pontuais de consumos não prioritários é outra solução. Este é, contudo, um cenário extremo. Segundo a DGEG, a partir de 2025 o padrão de segurança da rede elétrica é sempre cumprido. E, na verdade, poderá sê-lo antes disso, caso a Iberdrola consiga colocar as três centrais do Tâmega em operação antes dessa data. A primeira e mais potente dessas três centrais já está ligada à rede elétrica. 9. As centrais a gás são a maior garantia de segurança de abastecimento? Em Portugal e em vários outros países sim, embora haja diversos outros sistemas elétricos que contam com a energia nuclear para esse papel. Portugal apostou no gás natural na década de 1990, criando uma rede de abastecimento para uso doméstico e industrial (nas áreas litorais e mais urbanizadas do país) e lançando um conjunto de centrais de ciclo combinado alimentadas a gás. Hoje Portugal tem uma potência instalada de quase 20 gigawatts (GW), dos quais 7,1 GW em centrais hidroelétricas, 5,6 GW eólicos, 4,5 GW em centrais a gás natural, 1,8 GW fotovoltaicos e 0,7 GW de centrais de biomassa. A nossa ponta de consumo rondou, no inverno do ano passado os 10 GW (este ano está um pouco abaixo disso). E um sistema elétrico deve ser desenhado de forma a ter suficiente capacidade firme para responder aos picos de procura, sabendo que parte da capacidade instalada por não estar disponível para produzir a cada momento (as renováveis têm limitações, seja porque há anos mais secos, com menos água nas albufeiras, ou porque há dias com pouquíssimo vento ou porque as fotovoltaicas só produzem durante o dia). São as quatro centrais de ciclo combinado a gás natural (Ribatejo, Lares, Pego e Tapada do Outeiro) que conferem ao sistema elétrico capacidade de backup para reagir quando faltam as fontes renováveis. Mas parte da capacidade hidroelétrica também pode desempenhar esse papel: há 2,7 GW de capacidade de bombagem, que permite recuperar água para as albufeiras e fazer a gestão do armazenamento hídrico, para ter mais recurso para reaproveitar. Mas a bombagem hidroelétrica é uma solução cara. E as centrais a gás podem também sê-lo, como mostraram os últimos meses. 10. No futuro há alternativa ao gás? A persistência de períodos de seca tende a obrigar o nosso sistema a recorrer mais às centrais a gás natural. Mas é possível pensar numa alternativa? Teoricamente, é possível desenvolver centrais alimentadas não com gás natural mas com gás sintético ou hidrogénio verde. Todavia, conceber um sistema de backup assente em centrais térmicas a queimar hidrogénio verde parece ser para já inviável no plano económico, além da ineficiência do processo de usar eletricidade para produzir gás, para queimar esse gás para produzir eletricidade. A política energética e ambiental que Portugal tem vindo a seguir prevê o uso do gás natural no sistema elétrico pelo menos até 2040. Para já vão sendo estudados cenários de crescente incorporação de um conjunto de soluções complementares para dar flexibilidade ao sistema elétrico. Essas soluções contemplam, além do reforço das interligações com Espanha e o resto da Europa, o investimento em baterias de larga escala (que permitem conservar parte da produção de uma grande central solar ou eólica para ser injetada na rede durante a noite), as albufeiras das barragens (um armazenamento de mais larga escala), os gases sintéticos (como armazenamento sazonal para substituição do gás natural) e a gestão da procura (permitindo que partes da procura possam ser reduzidas, de forma flexível e remunerada, para responder a necessidades pontuais do sistema elétrico).

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