segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Transplante de Isabel preso na burocracia: mãe pediu visto para viajar, embaixada de Portugal voltou a exigir relatórios médicos, Santos Silva dá “instruções” para acelerar processo

EXPRESSO, SOCIEDADE Transplante de Isabel preso na burocracia: mãe pediu visto para viajar, embaixada de Portugal voltou a exigir relatórios médicos, Santos Silva dá “instruções” para acelerar processo Para a emissão do visto, Embaixada de Portugal na Guiné Bissau exige novo relatório sobre a situação clínica de Isabel Bapalpeme que aguarda em Portugal transplante de pulmão, apesar de ter desde 2018 todos os documentos médicos. A mãe da jovem saiu hoje do consulado sem sequer iniciar o processo. “O tempo da Isabel não é o tempo da burocracia”, diz a médica que a acompanha. O Ministro dos Negócios Estrangeiros já exigiu à embaixada que desenrole o novelo da história Share on FacebookTweet about this on TwitterShare on LinkedInEmail this to someone 20:49 7 Fevereiro, 2022 | Joana Pereira Bastos, Raquel Moleiro e Ana Baião (foto) Sábado Gomes Bapalpeme chegou hoje ao consulado português em Bissau, na Guiné, 15 minutos antes da hora marcada. 8H45 e já lá estava. De todas as vezes que lá foi nos últimos anos, saiu como chegou: de mãos vazias, sem o visto de que precisa para viajar para Portugal para junto da filha Isabel, que partiu em 2014 para tratamentos médicos e aguarda sozinha um transplante urgente de pulmão que a salve. Mas desta vez ia confiante. Sabia que ia ser atendida e que, finalmente, sairia feliz. No domingo, o vizinho foi bater-lhe à porta para dizer-lhe que tinha uma chamada, queriam falar-lhe com urgência. Do outro lado do telefone, estava o responsável da secção consular em Bissau a pedir-lhe que fosse, no dia seguinte, segunda-feira, às 9h, à embaixada portuguesa para iniciar o pedido de emissão do tão desejado visto humanitário para ir ter com a filha. Mais do que clínica, a urgência da chamada do diplomata foi mediática: o Expresso publicou na passada sexta-feira a história da sua filha Isabel Bapalpeme, uma jovem guineense de 29 anos a quem uma tuberculose destruiu os pulmões e que vive num t1, no Barreiro, sem qualquer familiar, porque a embaixada ignorou os pedidos médicos para a emissão de visto para a mãe. E ainda não foi hoje que o processo, urgente, avançou. A mãe, Sábado, só foi atendida às 11h, depois de duas horas de recusa de entrada por parte do segurança da representação diplomática, que alegava não estar registado qualquer agendamento. Foi precisa nova troca de telefonemas intercontinentais, entre a mãe, o Expresso, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e Bissau, para que fosse desbloqueado o diferendo. Por fim, a guineense foi atendida por um funcionário administrativo que recusou, por agora, a entrada do pedido, por falta de documentação. Os relatórios médicos que a embaixada tem na sua posse desde 2018, quando a situação já era urgente, não servem: são precisos novos, explicaram à mãe, a quem deram ainda uma lista de tudo o que precisa ter para avançar com o processo. Sábado explicou que não sabe ler, se lhe podiam dizer o que era necessário, ela tinha ali muitos documentos com ela, incluindo relatórios mais recentes. O funcionário disse-lhe que não podia ler a lista, só um familiar. Ela estava sozinha, tal como Isabel no seu T1. “Não tem visto. Falta documento”, resumiu Sábado ao Expresso, profundamente triste, após sair do consulado. A lista, fotografada depois com um telemóvel, revela os requisitos de um pedido igual aos outros, sem urgência humanitária: seguro de viagem, registo criminal, comprovativo de meios de subsistência, reserva de voo, o formulário, duas fotografias e a declaração médica a atestar a necessidade de assistência. “Não se compreende este pedido, uma vez que os relatórios já foram entregues em 2018 e desde então o estado de saúde só se agravou. O tempo da Isabel não é o tempo da burocracia”, lamenta a pneumologista Ana Cysneiros. Confrontado pelo Expresso com mais este impasse, o MNE garantiu ao Expresso que “o Ministro deu instruções à Secção Consular da Embaixada em Bissau para não exigir mais do que o relatório médico já apresentado, visto que é pública e notória a necessidade da cidadã que se encontra em Portugal de ter acompanhamento familiar nas circunstâncias muito difíceis de saúde por que está a passar”. A vida num fio azul Mesmo com o aparelho portátil de oxigénio em débito máximo, Isabel já quase não consegue sair de casa. Nos últimos meses foi desistindo, uma a uma, das rotinas que mantinha dentro do bairro. Ela tenta falar, quer falar, mas falta-lhe fôlego. Tinha 15 anos quando a tuberculose a apanhou numa aldeia no meio do mato, na Guiné-Bissau, onde vivia. Foram oito anos de tosse, febre, o corpo cada vez mais magro até aos 27 quilos, em 1,73 m, com que chegou a Portugal, de urgência, ao abrigo do programa de cooperação internacional para a saúde. Internada em 2014 no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, foi-lhe debelada a doença, mas as lesões eram irreversíveis. O transplante é a única solução. Até lá, espera sozinha, presa a um fio azul de vários metros que a liga ao concentrador de oxigénio colocado na entrada da casa e que lhe permite circular pelo pequeno apartamento. O silêncio em que vive só é interrompido pelo som da máquina que a liga à vida. “Queria muito a minha mãe aqui. Não consigo sorrir desde 2008 e eu não era assim. Era alegre, espontânea. Mas agora o meu mundo está a fechar-se”, desabafa. O suporte familiar é um dos fatores fundamentais para um doente poder ser transplantado. Isabel está em lista de espera, mas o facto de viver sozinha é um obstáculo ao sucesso da intervenção. Por isso, os médicos que a acompanhavam no Centro Hospitalar Lisboa Norte enviaram, em 2018, duas cartas à Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau apelando à emissão de um visto para a vinda da mãe. Nenhuma das missivas, onde era descrita a gravidade da situação e a necessidade “fundamental” da presença da família, teve resposta. E apesar dos apelos humanitários, em março de 2019 o pedido de visto foi recusado, por “não ser possível comprovar a intenção da requerente [a mãe, Sábado Bapalpeme] de abandonar o território antes do visto caducar”. Ou seja, por não existir uma data de regresso da mãe, temendo-se a permanência irregular em Portugal. Ao Expresso, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) justificou esta recusa com o facto de a mãe ter pedido o visto errado: “A referida cidadã apresentou um pedido de visto Schengen sem preencher os respetivos requisitos. Deveria ter requerido um visto nacional de estada temporária para acompanhamento de familiar sujeito a tratamento médico (tipologia E7).” Mas a embaixada nunca lhe explicou isso, mesmo sabendo, pelas cartas dos médicos, que se tratava de uma situação de saúde. Isabel é agora seguida no Centro Hospitalar de Lisboa Central, a que pertence o Hospital de Santa Marta, o único no país a fazer transplantes de pulmão. Apesar de estar há mais de dois anos a ser acompanhada na consulta de transplantação, só recentemente entrou em lista de espera ativa. Havia doentes mais urgentes e até há pouco tempo a jovem ia conseguindo fazer a sua vida com o recurso a oxigénio, mesmo com grandes limitações. Mas o seu estado agravou-se. “O pulmão direito está completamente destruído e o esquerdo já tem grandes dificuldades”, explica Luísa Semedo, responsável da equipa de transplantação pulmonar. De quanto tempo vai ser a espera, ninguém sabe: há cerca de 60 pessoas na mesma lista. Neste momento, qualquer esforço pode fazê-la colapsar. Onda de solidariedade Mas também há boas notícias. A reportagem publicada esta sexta-feira no Expresso sobre a longa espera de Isabel por um transplante de pulmão e pela vinda da mãe gerou uma onda de solidariedade entre os leitores, que ao longo do fim de semana fizeram chegar ao jornal vários emails com oferta de doações, desde mobília a computadores. No pequeno T1, no Barreiro, Isabel vive com quase nada. “Faltam sofás, mesa de jantar, secretária, estante para os romances e policiais que tanto gosta de ler. Passa as horas sentada numa cadeira, a fazer os trabalhos de casa do curso profissional de secretária administrativa que está a tirar. Porque também falta um computador”, descrevia o artigo. Graças aos donativos, foi possível angariar um portátil e toda a mobília em falta. Um crowdfunding, organizado pela enfermeira Carmen Garcia, autora da página “A Mãe Imperfeita”, reuniu em duas horas os cerca de 3000 euros necessários para as passagens de avião da mãe e dos dois irmãos menores de Isabel. Assim que tiverem visto, poderão finalmente juntar-se a ela.

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