quinta-feira, 5 de maio de 2022
"Calma, chegou o tio Ancelotti, está tudo bem." O treinador que pede a opinião aos jogadores sobre os rumos a seguir em campo.
Calma, chegou o tio Ancelotti, está tudo bem
David Ramos/Getty
O treinador que pede a opinião aos jogadores e lhes pergunta, a meio dos jogos, quem deve substituir, era a serenidade em pessoa no meio de mais uma épica reviravolta no Santiago Bernabéu. Aos 62 anos, Carlo Ancelotti irá à quarta final da Liga dos Campeões sem “nunca usar o chicote” e deixando os futebolistas irem à boleia do talento
5 MAIO 2022 16:39
Diogo Pombo
Não sei se repararam, mas estava um senhor diante do banco do Real Madrid quando a imprudência precipitada do pé esticado de Rúben Dias derrubou a matreirice de Benzema: com as mãos nas ancas, de fato e colete abotoado a suster-lhe a barriga generosa, Carlo Ancelotti era a quietude no meio do fervilho de entusiasmo provocado pelo penálti na área do Manchester City. Enquanto todos festejavam a boa-nova de um apito do árbitro, ele rodava sobre o próprio eixo, as mãos ainda na cintura, e apenas deu uns passos para trás.
Na vez seguinte em que a transmissão o procurou, ao intervalo do prolongamento, o treinador estava cercado e no meio do conglomerado de jogadores do Real Madrid. Calmo, a olhar à sua volta, quase impávido a ouvir as palavras de um ou outro pupilo sem parecer ter dito sequer uma da sua justiça; mas lá estava ele, o líder sereno no lugar onde se convencionou esperar grandes discursos, épicas motivações das tropas. Ancelotti pareceu limitar-se a apenas estar ali porque sim, a fazer-se ver.
Segundos antes, vira-se Pep Guardiola a gesticular freneticamente, calvo dos nervos que o futebol lhe causa, a multiplicar-se em instruções dadas aos futebolistas que estavam a ser assomados pelas artes ocultas que o Santiago Bernabéu evoca quando as lides europeias deixam a sua equipa à rasca. Na noite de quarta-feira, estava especialmente apertada por nunca ter sobrevivido a uma meia-final ao perder a primeira mão e eis que, mesmo sendo inferior durante a maioria dos 180 minutos da eliminatória em tudo de tangível que há num jogo de futebol, o Real Madrid revoltou-se contra os ponderáveis e ganhou.
O prolongamento fez-se por inteiro com os merengues a terem de aguentar depois de se superarem e o City teve as suas oportunidades, Foden e Grealish deram arrepios na espinha a um estádio apinhado e as câmaras logo se centravam no banco de suplentes do Real. Marcelo parecia estar num concurso de dança, bradava aos céus e atirava-se para o chão; o frio Toni Kroos levanta-se e corria quase relvado dentro; com a fita do cabelo já enrolada no pulso, Modric gritava para o campo.
Carlo Ancelotti apenas tirava uma das mãos da cintura.
Angel Martinez/Getty
O italiano permaneceu com esse estado de ânimo tão dele, com a gravata sempre impecável, ao ponto de quem dirigia a transmissão que desaguava na caixa mágica sedenta de espetáculo ir perdendo o interesse no italiano, de cada vez que ia para um plano do banco arreliado do Real Madrid. Percebeu que de Ancelotti não sacaria um frame de reação com potencial viral e, injustamente, o domador dos nervos foi sendo ignorado a cada amostragem de como a trincheira dos espanhóis estava a sobreviver a mais uma epopeia inexplicável.
Terminada mais uma reviravolta para a coletânea madridista, Clarence Seedorf, que jogou três épocas e meia no Real nos idos 90, ousou traçar a origem à repetição de uma noite já típica deste clube. “A mentalidade do Real Madrid não é algo criado em um ano ou dois, ou até em 10. Tem a ver com chegar a um clube onde sabes que fazes parte de uma coisa muito maior do que tu”, disse, pleno de duas frases aplicáveis a, pelo menos, dois ou três outros clubes que batalham pelas mesmas conquistas. Acrescentaria uma outra, talvez mais credível e sensata, mesmo que também não explique o que aconteceu: “O Manchester City, como o PSG, não tem uma mentalidade”.
Muitos tentam e continuarão a tentar teorizar sobre o etéreo e as propriedades celestes emanadas pelo Real Madrid, onde os jogadores chegam e somem e este tipo de noites continuam a suceder. Ao último apito, dada soltura aos festejos, lá estava Carlo Ancelotti por fim a reagir no banco, esticando os braços e sintonizando-os num duplo murro dado no ar antes de receber abraços vários. Nada efusivo, zero fora de si. “Explicá-lo não é fácil”, concedeu, mais tarde, ao admitir o óbvio: “ninguém pensava que íamos jogar outra final, mas aí estamos”.
Será a quarta decisão da Liga dos Campeões para o homem de quem rezam as histórias de não se pôr com grandes ensaboadelas de tática ou treinos de pormenor, que pede a opinião aos jogadores sobre os rumos a seguir em campo e prefere canalizar as energias para os ordenar sem bola, dando-lhes as bases defensivas para não sofrerem, deixando-os de rédea solta quando for momento de atacar. Ancelotti é um fã da liberdade ser um carril para a responsabilidade.
Quando o Real já tinha os seus três golos contra o City e o jogo esquentava por todo o lado, a gritar por substituições de pernas cansadas pelo caos, Ancelotti pediu direções aqueles que dirige, sem pudores. “Isso descreve-o muito bem e como as coisas funcionam bem na equipa”, disse o cândido Toni Kroos, ao contar “as dúvidas” de Ancelotti sobre “quem deveria ou não entrar” na partida. “Todos nós já vimos uns quantos jogos. No final, é ele quem decide, mas claro que está interessado na nossa opinião”, contou o alemão que é um dos anciãos de noites fabulosas na Champions.
E há um simbolismo a retirar desta última façanha alimentadora do misticismo, uma certa brisa que ameaça virar a página de um livro aberto e que foi cortejada pelo manejo do treinador apelidado de Carletto. Aos 90’ e 90’+1, no ápice temporal em que o Real Madrid é o Real Madrid, quando os 21 anos de Rodrygo marcaram os golos que carimbaram o prolongamento, a tríplice velha guarda de Casimiro, Modric e Kroos já estava a fazer companhia ao italiano no banco, de onde não saiu o brasileiro Marcelo. A reviravolta fez-se pela força dos 19 de Camavinga, os 21 de Vinícius ou os 24 de Militão, pupilos mais recentes da doutrina inexplicável que recheia o clube nestas ocasiões.
É bastante provável que Carlo Ancelotti estivesse a falar verdade quando disse não conseguir dar razões para isto. Já vitorioso, confessaria que mostrou aos jogadores um vídeo no balneário, antes do jogo, que compilava as remontadas feitas pela equipa esta temporada. “Eram oito e o vídeo terminava com uma frase: ‘Falta mais uma’”. O treinador sabe como mexer no cerne dos homens que tem.
Nunca o faz pela força do cargo e a reputação que o precede também o atesta. John Terry, o capitão que teve no Chelsea, disse em tempos que Ancelotti foi o único técnico que apanhou a “perguntar coisas aos jogadores e a dar-lhes alguma responsabilidade”. Robert Lewandowski, com quem coincidiu no Bayern de Munique, descreveu-o “quase como um tio”. Cristiano Ronaldo chegou a elogiar “a pessoa sensível” que Ancelotti é, desejando que “todos os jogadores [tenham] oportunidade de trabalhar com ele”. Com o senhor de fato, colete, gravata e a sobrancelha esquerda com vida própria, a invadir a testa e a consumar a expressão facial que usa, por defeito, em qualquer circunstância.
O treinador anafado é mais um benfeitor da queda do Real Madrid para estas remontadas históricas e a calma em pessoa que Carlo Ancelotti é, sereno no meio de toda a euforia, vai servindo de contrapeso no clube que desafiou a lógica para estar na próxima final da Liga dos Campeões.
O italiano, um dia troçado no Parma por vender Gianfranco Zola e torcer o nariz à contratação de Roberto Baggio, por ser dogmático no 4-4-2 pelo qual então se regia, poderá ganhar a sua quarta Champions a 28 de maio, sendo hoje o técnico que deixa o talento dos jogadores ditar a sorte de todos.
A correr bem, como já correu há uma semana quando o Real conquistou a liga espanhola, ele lá estará, a ser elevado pelos futebolistas como se fosse um deles — no festejo do título pelas ruas de Madrid, a câmara já lhe apreciou a viralidade de um momento quando Carletto pousou com Vinícius, Militão, Alaba e Rodrygo, de óculos escuros, charuto nos lábios e entre os dedos, em pose de patriarca. A sobrancelha estava adormecida, a repousar e com as defesas em baixo. “Eu não fumo, era só uma foto com os meus amigos. Porque os jogadores são meus amigos”, disse, também, no final da noite no Bernabéu. Talvez isso explique a sua calma.
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