terça-feira, 3 de maio de 2022

"Colocar todo o ênfase em ajudar a Ucrânia a lutar" é o "maior erro": a análise de um ex-tenente dos EUA que previu desastre no Afeganistão

Expresso GUERRA NA UCRÂNIA "Colocar todo o ênfase em ajudar a Ucrânia a lutar" é o "maior erro": a análise de um ex-tenente dos EUA que previu desastre no Afeganistão
Daniel L. Davis Direitos Reservados Destacado para o Iraque, em 1991 e em 2009, e para o Afeganistão, em 2005 e 2011, Daniel L. Davis recebeu a Estrela de Bronze, a quarta medalha mais importante nas Forças Armadas dos EUA, por duas vezes. O especialista em assuntos de defesa e autor de "The Eleventh Hour" conta, nesta entrevista ao Expresso, por que está alarmado com o ponto a que chegou a guerra na Ucrânia, e aponta tudo o que pode acontecer de errado para o mundo se ver mergulhado num conflito à escala global. O risco é "enorme" e, apesar da guerra dos ucranianos ser "razoável e justa", o ex-militar diz que a aposta na via diplomática deve ser uma prioridade face à confrontação entre as partes 3 MAIO 2022 17:22 Catarina Maldonado Vasconcelos Catarina Maldonado Vasconcelos Daniel L. Davis garante que o mundo tem motivos para se preocupar: a guerra na Ucrânia pode entrar num momento de alarme internacional, com outros países a envolverem-se no conflito. Daí a uma guerra mundial é um passo. A Rússia, que tem "0% de hipóteses" de bater a NATO, só poderia responder com o uso de armas nucleares, explica o antigo tenente-coronel, que ganhou notoriedade em 2012, quando voltou do Afeganistão e publicou um relatório em que descrevia a derrota como iminente, quando os líderes militares e civis diziam aos norte-americanos que tudo corria bem. Os acontecimentos que se sucederam provaram que estava certo. Agora, com os olhos postos na Ucrânia, o especialista em segurança internacional e defesa, que se aposentou do Exército dos Estados Unidos da América após 21 anos de serviço, começa a antecipar uma vitória russa no Donbas - isto porque Moscovo soube ler e aprender com os próprios erros. Daniel L. Davis alerta que o artigo n.º 5 do Tratado da NATO - que estipula que um ataque a um país membro é um ataque a todos - será posto em prática no dia em que qualquer território for ameaçado: e, se assim for, o uso de armas nucleares, o último reduto e o mais extremo, seria a "única forma" que a Rússia teria "de se defender" . As tropas russas não começaram bem a guerra. Havia grandes problemas militares e logísticos... Sim, o maior problema que vi, sobretudo inicialmente, foi a inadequação do treino militar russo. Os militares não foram bem treinados em termos táticos, em unidades e individualmente, mas também a um nível sénior, no comando das operações. A um nível operacional, também não foram muito bem treinados. Isso foi demonstrado com a estratégia adotada, com a Rússia a decidir dividir as suas tropas, atacando de quatro direções diferentes na Ucrânia. Isso fez com que nenhuma ofensiva fosse capaz de dar resposta à resistência inimiga que enfrentou, dando tempo à Ucrânia para recuperar do choque inicial, e, especialmente nas áreas à volta de Kiev, possibilitando que causassem alguns prejuízos às tropas de Moscovo. Isto a um nível estratégico...
Ucranianos cercam um tanque russo destruído perto de Makariv, Kiev Ucranianos cercam um tanque russo destruído perto de Makariv, Kiev Anadolu Agency Os militares não foram bem treinados em termos táticos, em unidades e individualmente, mas também a um nível sénior, no comando das operações. E a nível tático? Ao nível tático, houve abordagens terríveis. Um vídeo muito divulgado em março mostrava uma coluna imensa de tanques a dirigir-se lentamente para Kiev, que foi travada pela artilharia ucraniana, que fez explodir uma série de tanques. Nem queria acreditar que cometessem um erro desta envergadura, porque são operações de blindagem tão simples de fazer em qualquer parte do mundo... Por isso, não se pode colocar os tanques daquela maneira numa área com construções, porque é exatamente isto que pode acontecer. Este foi o problema inicial. No entanto, a Rússia mostrou que consegue aprender, tanto a nível tático como a nível estratégico. Não foi coisa pequena a liderança russa ter admitido que cometeu um erro, ter retirado de forma absoluta todas as tropas do eixo de Kiev e tê-las feito deslocar-se centenas de quilómetros, para o leste. Colocar todas as atenções no Donbas faz todo o sentido e mostra que as Forças Armadas estão dispostas a aprender com os seus erros e mudar muito rapidamente. Agora que centralizaram todas as suas forças no Donbas e que demonstraram que taticamente são capazes de aprender com os próprios erros, não repetindo as mesmas falhas, estão a começar a provocar mais prejuízos no adversário. Se [os russos] vencerem o combate no Donbas não se trata apenas de vencer esta batalha. O que significaria materialmente seria a destruição potencial da maioria das Forças Armadas ucranianas que restam. Militares ucranianos recebem cuidados médicos em Kramatorsk Militares ucranianos recebem cuidados médicos em Kramatorsk Yasuyoshi Chiba A este ponto, o que sabemos sobre a batalha no Donbas é que os russos conseguiram diminuir dramaticamente a taxa de mortalidade e aumentá-la do lado ucraniano. Por isso, estão a começar a ter algum sucesso a penetrar a resistência ucraniana. Ainda não fizeram nenhuma conquista significativa, mas já a enfraqueceram de forma consistente, com a saturação de artilharia, rockets e ataques aéreos. Se conseguirem algum avanço, se enfraquecerem o a defesa ucraniana, terão muitas formações militares na reserva que depois poderão ser usadas para seguir em frente. É muito cedo para dizer, mas começa a ver-se uma vitória russa no Donbas. Então é justo dizer que a Rússia começou a vencer esta guerra quando a deslocou para leste? Começou certamente a vencer esta batalha. Ainda há um longo período de guerra pela frente, mas, como tenho defendido, se vencerem o combate no Donbas não se trata apenas de vencer esta batalha. O que significaria materialmente seria a destruição potencial da maioria das Forças Armadas ucranianas que restam. Eles têm lá entre 40 e 60 mil militares e o objetivo russo é destruir as unidades ucranianas, não tanto capturar territórios ou cidades. Querem sobretudo destruir a capacidade da Ucrânia de se defender. Se conseguirem travar, pela destruição total ou pela captura, 40 ou 50 mil unidades, isso deixará a Ucrânia com muito menos recursos para defender o resto do país. Nesse momento, torna-se possível as forças de Moscovo avançarem até Odessa ou Kharkiv (Carcóvia) e, se dominarem uma dessas cidades, podem mais uma vez ameaçar Kiev. Ainda serão necessários muitos combates, e isso requer tempo. Se a Ucrânia conseguir aguentar-se no Donbas e prevenir o sucesso do cerco russo, será impossível para Moscovo aventurar-se para Odessa ou para Kharkiv, porque haverá milhares de tropas ucranianas no meio. Tudo, neste momento, depende dos combates no Donbas. Espera que o exército russo altere alguma coisa até 9 de maio, o "dia da vitória"? O que é expectável ver no campo de batalha? Nada. Esse é um desejo que acredito que eles adorariam não ter expressado. Não vão conseguir nada até 9 de maio. Mesmo que fizessem a primeira penetração significativa, não conseguiriam ter uma vitória a 9 de maio. No máximo, o que poderão conseguir é alguma vitória em Mariupol, mas acredito que a Rússia não vai fazer nada de diferente na Ucrânia. Não têm nada para mostrar ainda... Alguns comentadores russos dizem que é uma inevitabilidade conquistarem a Moldávia. Se o conflito se espalha para qualquer lugar, além das fronteiras ucranianas, tornar-se-á ainda mais provável que a guerra passe para outro nível. Qual diria ser a probabilidade de esta guerra ir além da fronteira com a Moldávia? É possível. Temos visto os ataques dos últimos dias e vemos a Moldávia a conversar com a Roménia acerca de possivelmente unificarem os seus países para a Moldávia poder juntar-se à NATO. Vemos ambas, a Ucrânia e a Rússia, ironicamente, a falarem sobre a Rússia invadir a Transnístria e sobre o que a Moldávia faria. Alguns comentadores russos dizem que é uma inevitabilidade conquistarem a Moldávia. E, claro, se o conflito se espalha para qualquer lugar, além das fronteiras ucranianas, tornar-se-á ainda mais provável que a guerra passe para outro nível. É um perigo tão grande, a Moldávia e a Transnístria são tão pequenas, em comparação... Mas é o conceito de atravessarem mais uma fronteira que alarmará muitas pessoas.
Cemitério em Lviv Cemitério em Lviv Leon Neal Moscovo tem aumentado a retórica de ameaça ao Ocidente, e já disse até que os países ocidentais estão envolvidos no conflito se fornecem armamento à Ucrânia. É possível que a Rússia ataque algum desses Estados com mísseis, por exemplo?Esses comentários precederam as declarações do secretário de Estado da Defesa Lloyd Austin sobre as intenções dos Estados Unidos de enfraquecerem ao máximo as forças russas. Mas também se seguiram às declarações do ministro da Defesa britânico, que considerou que seria justo Kiev considerar atacar alvos em território russo utilizando mísseis disponibilizados pelo Reino Unido. E os russos, incluindo o próprio Putin, disseram que se forem utilizadas armas fornecidas pela NATO para atacar e destruir alvos na Rússia, ou para matar russos, reservam-se o direito de retaliação. Não especificaram o que isso significa, mas as implicações seriam, a meu ver, que poderiam atacar algumas das forças britânicas, ou, pelo menos, algumas áreas onde o material entra na Polónia. Não é inconcebível que a Rússia use mísseis hipersónicos para destruir depósitos de munições na Polónia. E, mais uma vez, esse seria mais um acontecimento que faria escalar a guerra além da Ucrânia, porque, assim que um ataque atinja território da NATO, podem ter a certeza de que, no mesmo dia, seria invocado o artigo n.º 5. Esse risco é enorme; é, pelo menos, possível. E, para sermos mais claros, esse risco é de uma guerra mundial... Esse é o verdadeiro risco, porque a Rússia já encara isto há bastante tempo como um conflito entre a NATO e Moscovo. A Rússia acredita que esta é uma luta existencial, e, desde o início, defende que o Ocidente quer destruí-la. Não quer proteger a Ucrânia, mas destruir a Rússia, é o que sentem... E comentários como estes, do ministro da Defesa britânico e do secretário de Estado norte-americano, aumentam essa sensação. Os comentários de Putin e Lavrov sobre possivelmente usarem armas nucleares têm como motivação o medo, porque eles sabem que não aguentariam enfrentar a NATO num conflito. A Rússia já terá sorte se conseguir vencer esta grande batalha na Ucrânia, mas perto da sua fronteira. Sabem que têm 0% de hipóteses de vencerem uma guerra contra a NATO. A única forma que teriam de se defender de ataques da NATO seria com armas nucleares, ponto final. Eles sabem isto, e, se chegar a esse ponto, também sabem que será uma ameaça existencial para a Rússia. Não seria de todo inesperado que a Rússia usasse armas nucleares, e é por isso que sou tão direto dizendo que temos de parar isto. A melhor forma de preservar a segurança dos membros existentes da NATO é terminar esta guerra rapidamente. Isso significa algum tipo de negociação ou acordo. Como se trava esta guerra, neste momento, já com os ânimos tão exaltados, acusações e ameaças de parte a parte e as negociações suspensas porque "não há condições" para tal? Em primeiro lugar, temos de enfrentar e reconhecer esta realidade dura e fria: a melhor forma de preservar a segurança dos membros existentes da NATO é terminar esta guerra rapidamente. Isso significa algum tipo de negociação ou acordo. O problema que temos neste momento, e que decorre do nosso maior erro, é estarmos a pôr todo o ênfase no combate e em ajudar a Ucrânia a lutar. Estamos a empenhar quase zero esforços na via diplomática. Parece que estamos a tentar encorajar a Ucrânia a aguentar-se ainda mais e não a fazer qualquer concessão ou negociação. E o problema é que há muito poucas razões para acreditarmos que a Ucrânia pode superar militarmente o adversário, já que o compromisso claro da Rússia é vencer esta guerra. Temos de reconhecer que a probabilidade de sucesso é muito pequeno e o risco de escalada para uma guerra nuclear é bastante elevado. Temos de redirecionar o nosso foco, e pôr pelo menos tanto ênfase num acordo negociado quanto o que estamos a colocar para terminarmos esta guerra a nível militar. Isso reduzirá o risco de escalada. Já foram reportados alguns 'fogos' em território russo, na fronteira. A Ucrânia nunca se assumiu responsável por eles, mas não há outra explicação, certo? A Ucrânia pode realmente seguir os conselhos do Reino Unido? Sim, claro que é a Ucrânia, quem mais poderia ser? A Rússia não vai fazer explodir os seus próprios depósitos, porque precisa deles para lutar. A Ucrânia permanece calada em relação a isso, porque a Rússia já tinha ameaçado retaliar contra alvos sensíveis em Lviv e em Kiev. Querem negá-lo e ter alguma credibilidade para não receberem retaliação, mas claro que o fizeram. E, repare, isto é uma guerra. A Rússia tem atacado infraestruturas de norte a sul do país. É válido que a Ucrânia também defina alvos, mas isso comporta riscos de escalada. Militarmente, em termos de equipamento militar e armamento, a Ucrânia está a "lucrar" de alguma forma com os erros dos EUA no Afeganistão? Teve alguma utilidade, mas falamos de uma mão cheia de helicópteros que são até muito vulneráveis aos ataques russos. É por isso que não os vemos voar, porque podem ser derrubados muito rapidamente. Podem ser utilizados em alguns lugares, mas não são muito úteis em combate. E isso explica-se pela realidade dos sistemas aéreos russos, que continuam intactos. A Ucrânia tem algumas aeronaves, mas estão muito danificadas, porque a Rússia atingiu-as logo no início e mantém as suas operacionais. Há umas semanas foi anunciado que tinham sido fornecidas peças, para que mais 20 aviões ficassem operacionais. Não ouvimos, no entanto, comentários posteriores acerca de como eles foram usados. Não vão voar porque a frota russa continua totalmente operacional - assim que as aeronaves ucranianas levantem voo, vão ser derrubadas. A Rússia continua a ser superior à Ucrânia: têm mais tanques, mais artilharia, a capacidade de produzir mais armas e munições, bem como combustível. Mesmo com toda a ajuda recebida do Ocidente, não acredito que a Ucrânia consiga vencer. Com a sua experiência em campos de batalha e conhecimento sobre guerra, alguma coisa ainda o surpreende neste conflito? Eu fui surpreendido pelo quão mal a Rússia se saiu taticamente no começo. Não havia qualquer razão para serem tão maus, têm a sua própria história na II Guerra Mundial para estudar, sobretudo as táticas e operações. Parece que nem estudaram a própria história, e muito menos a operação norte-americana no Iraque, em 2003, ou a Tempestade no Deserto, em 1991. Também fui surpreendido pela efetividade da defesa ucraniana, porque nem eram um exército há uns anos. Tinham 60 mil forças e, durante oito anos, foram crescendo, mas não acreditava que pudessem bater-se tão bem. A Rússia não está a ser tão boa quanto eu pensava, só que continua a ser superior à Ucrânia: têm mais tanques, mais artilharia, a capacidade de produzir mais armas e munições, bem como combustível. A Rússia detém superioridade aérea. Como esses fatores persistem, mesmo com toda a ajuda recebida do Ocidente, não acredito que a Ucrânia consiga vencer. Quando a guerra começa, torna-se muito feia muito rapidamente. Falo de milhares de anos da História humana. Quando a guerra é iniciada, os piores instintos humanos são despertados. O Presidente norte-americano disse, de forma contundente e direta, que a Rússia estava a cometer genocídio, mas outros líderes têm sido mais cautelosos. Temem a escalada da guerra, de que falou? Ou têm mesmo dificuldade em aferir, enquanto decorre a guerra, se se trata de genocídio? Não é genocídio, é uma guerra. É isto que acontece durante as guerras, é horrível. É por isso que tenho dito tantas vezes, ao longo da minha carreira, mas também desde que me aposentei, que a guerra deve ser o último recurso absoluto. Só deve ser utilizada se a segurança nacional de um país é ameaçada. Não pode ser utilizada porque se pensa que talvez, mais tarde, algo negativo possa acontecer. Não, apenas se a segurança física de um país está em risco. É esse o caso da Ucrânia, neste momento. A guerra dos ucranianos é razoável e justa, mas a Rússia poderia ter feito muitas outras coisas em vez disto. Mas escolheu a guerra, e é por isto que a guerra é tão horrível: quando começa, torna-se muito feia muito rapidamente. Falo de milhares de anos da História humana. Quando a guerra é iniciada, os piores instintos humanos são despertados. Temos sempre atrocidades, temo-las em cada uma das guerras. É impossível travá-las. Repare, no Ocidente não se fala muito disto, mas há também muitas acusações de crimes de guerra ucranianos. Os ucranianos são pessoas também, e não conseguem assistir a estas atrocidades sem fazerem nada. E quem perde? São os civis de ambos os lados: os russos no Donbas, por exemplo, e os ucranianos em toda a parte. Algo tem de ser feito, e isso significa encerrar esta guerra rapidamente. Mesmo os julgamentos de Nuremberga não foram possíveis durante a II Guerra Mundial. Até terminarmos a guerra, podemos abrir processos, usar palavras como 'genocídio', mas isso não fará qualquer diferença. Não tem efeitos concretos, não muda nada e não protege ninguém, sobretudo a população que continua em risco de morrer. Paremos de matar primeiro, e depois poderemos acusar. As acusações só servem para enfurecer a Rússia? Sim, mas também deixam os países ocidentais e os ucranianos ainda mais zangados, se é que isso ainda é possível.

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