Fátima: visões ou aparições?
9/5/2017,
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Pode haver
visões ou aparições? Como se distinguem? E que aconteceu em Fátima? Foram
aparições ou simplesmente visões?
O filósofo francês Jean Guitton
(1901-1999), num livro intitulado Os misteriosos poderes
da fé, escrito em diálogo com o jornalista e escritor Jean-Jacques
Antier, (edição francesa de 1997 e tradução portuguesa de 2000), observa que as
pessoas com fé tendem a admitir que as visões ou aparições são possíveis e que
até já aconteceram muitas vezes, ao passo que os descrentes ou céticos dirão
que não têm qualquer consistência ou realidade, nem sequer podem existir. Para
estes, aquilo a que chamamos visão ou aparição não é mais do que um estado
doentio em que o protagonista se apercebe de uma sensação sem que esta tenha
nenhuma causa real na sua origem. Para os crentes, porém, a aparição ou visão é
uma experiência real (p. 283 da edição portuguesa).
Admitindo que possam existir, como se
distinguem «visões» de aparições»?
O mesmo filósofo distingue entre
visões exteriores e visões interiores. “As visões exteriores, ou visões
sensíveis, ou aparições, implicam a representação de uma entidade sobrenatural
– por exemplo a Virgem Maria – sob uma forma percetível aos sentidos”. Aqui, “o
objeto apresenta-se no espaço real e aqueles que acompanham o vidente podem
vê-lo ou não. Pelo contrário, as visões interiores são circunscritas
exclusivamente à consciência do vidente, e as eventuais testemunhas não as
veem” (p. 284).
A distinção essencial é, portanto,
entre “visão interior, cujo objeto está circunscrito à consciência do sujeito,
e a visão exterior (ou aparição), cujo objeto se apresenta sensivelmente no
espaço real” (p. 285).
O teólogo francês Louis Bouyer, no
seu Dicionário de Teologia, define
assim o conceito de aparição: “Chama-se aparição a uma manifestação de Deus,
dos anjos ou até de seres humanos que já morreram, (santos ou não), que se
apresenta de uma forma que impressiona os sentidos”. E conclui: “Deus, os anjos
e os santos podem manifestar-se a nós, se tal for a vontade divina, tanto por
uma simples impressão sobrenatural feita sobre a nossa imaginação, como pela
apresentação objetiva aos nossos sentidos de uma realidade corporal ou material
de origem milagrosa” (trad. espanhola de 1990, p. 84).
E em Fátima, para aqueles que
acreditam, houve visões ou aparições?
O filósofo português Carlos Henrique
do Carmo Silva, num artigo publicado por ocasião do 80º aniversário dos
acontecimentos de Fátima (“Aparições e experiências místicas: reflexão sobre o
fenómeno de Fátima e contributo para uma sua renovada meditação espiritual”, Didaskalia, Lisboa 1998), caracteriza o
que aqui aconteceu como “um celeste contacto” (p. 21), expressão que, só por
si, alude à mesma “realidade objetiva” de que falam os autores anteriormente
citados.
Uma aparição é, portanto, “um celeste
contacto”, que ali está, “no espaço exterior”, sob a forma de “uma realidade
corporal ou material”, mas indubitavelmente – e nem poderia ser de outra
maneira – “de origem milagrosa”.
Assim sempre se considerou terem sido
os acontecimentos de Fátima: isto é, “aparições”, e não simplesmente “visões”
da Virgem Santa Maria.
“Na idílica, porém rústica, paisagem
da Cova da Iria, como já nos Valinhos, e no pastoreio a que se dedicavam Lúcia,
Francisco e Jacinta, surgem recortes de uma outra Presença que lhes aparece e
se torna sensível”.
Assim resume Carlos Henrique do Carmo Silva estes acontecimentos, fazendo notar
logo de seguida que “se toma aqui a aparição não como uma visão (de diversas
«imagens invisíveis», de um magma fantasmático, ou de uma clarividência
confusa, semelhante à da consciência onírica…), mas na aceção do aparecer
visível de uma figura, um recorte presencial que distintamente se sobrepõe ao
regime do mundo da perceção habitual” (p. 37 e nota 82).
As aparições de Fátima são esta
presença objetiva e exterior da Virgem, manifestada aos três Videntes, presença
tão objetiva como a das árvores ou das casas, ou das próprias ovelhas que
pastoreavam, distinta destas ou de quaisquer outras realidades, porém, por ser
sobrenatural e de origem miraculosa.
Em sentido contrário, porém, temos um
texto assinado pelo Cardeal J. Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, ao tempo
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sob o título de Comentário Teológico, e incluído num
conjunto de Documentos sobre «A Mensagem de Fátima», com data de 26 de junho de 2000.
O Comentário começa por recordar a
distinção perfeitamente tradicional entre os três tipos de visões:
“A antropologia teológica distingue,
neste âmbito, três formas de perceção ou «visão»: a visão pelos sentidos, ou
seja, a perceção externa corpórea; a perceção interior; e a visão espiritual”.
Mas, depois de ter reconhecido a
existência de três tipos de visão, o Comentário limita consideravelmente o seu
alcance, pois, segundo ele, quer a visão seja interna ou externa, o vidente
deforma necessariamente o que viu.
O Comentário exclui em seguida
categoricamente que os acontecimentos de Fátima (ou de Lourdes) possam ser
visões exteriores ou sensíveis, e classifica-as deliberadamente entre as visões
interiores:
“É claro que, nas visões de Lourdes,
Fátima, etc., não se trata da perceção externa normal dos sentidos: as imagens
e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá,
por exemplo, uma árvore ou uma casa”.
Para o provar, dá um exemplo que
parece incontestável:
“Isto é bem evidente, por exemplo, no
caso da visão do inferno (descrita na primeira parte do «segredo» de Fátima) ou
então na visão descrita na terceira parte do «segredo».
Mas também não se tratou de uma
simples visão espiritual ou intelectual:
“De igual modo, é claro que não se
trata duma «visão» intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da
mística. Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a perceção interior que,
para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação
externa sensível”.
E acrescenta:
“Este ver interiormente não significa
que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação
subjetiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas
que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o
não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». Trata-se
de verdadeiros «objetos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo
sensível que nos é habitual. (…) A pessoa é levada para além da pura
exterioridade, onde é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se
lhe tornam visíveis”.
E insiste:
(…) As imagens por eles [os
pastorinhos de Fátima] delineadas (…) também não se hão de imaginar como se por
um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua
essencialidade pura, como esperamos vê-lo um dia na união definitiva com Deus”.
O Comentário nega, portanto, a
realidade dos fenómenos exteriores, e não vê, nas visões de Fátima, senão uma
perceção interior dos videntes. Para ele, em Fátima como em Lourdes, as figuras
vistas pelos videntes não se encontram exteriormente no espaço!
A descrição da Virgem pelas crianças
não seria, portanto, mais do que uma imagem daquilo que eles captaram
interiormente. Por outras palavras, Nossa Senhora não teria vindo a Fátima: os
visitantes não tiveram senão uma perceção interior da sua presença.
Esta leitura do Cardeal Ratzinger
pode ser contestada?
Pode, claramente, em primeiro lugar
porque, embora seja um texto oficial da Congregação para a Doutrina da Fé, não
é uma “Instrução” nem uma “Notificação”, como tantas que o Cardeal Ratzinger
assinou, recebendo depois a aprovação do Papa, que ordena em seguida a sua
publicação. Veja-se como termina, por exemplo, uma “Instrução sobre as orações
para alcançar de Deus a cura”, publicada em 14 de Setembro de 2000: “O Sumo Pontífice João Paulo II, na Audiência
concedida ao abaixo-assinado Prefeito, aprovou a presente Instrução, decidida
na reunião ordinária desta Congregação, e mandou que fosse publicada”.
Este modo solene de conclusão com a
aprovação papal não existe neste caso, o que se compreende, porque o texto em
apreço não pretende ser mais do que um “Comentário”, que intencionalmente não
se reveste de especial autoridade no âmbito do Magistério da Igreja. Será
legítimo, portanto, se houver razões para isso, pensar de modo diferente ou até
discordar sobre matérias que nele se abordam, sem prejuízo do grande respeito
que nos merecerá sempre o seu Autor.
Julgo, porém, que existem muitas
razões para discordar da classificação dos acontecimentos de Fátima neste
género intermédio, isto é, como sendo simples visões interiores, ainda que
genuínas e de origem sobrenatural.
A verdade é que a Ir. Lúcia era de
uma opinião totalmente contrária: ela estava certa de ter visto realmente a
Virgem Maria, como esperava um dia vê-la no Céu. Em 1924, na comissão de
inquérito canónico, foi-lhe feita esta pergunta: “Tens a certeza de que viste
realmente uma Senhora em cima da carrasqueira e de que não te enganaste?”
E Lúcia respondeu: “Tenho a certeza
de que a vi e de que não me enganei; ainda que me matassem, ninguém me faria
dizer o contrário”.
“E quem era essa Senhora?”
Respondeu: “Antes de ela dizer que
era a Senhora do Rosário, não sabia quem era; agora estou convencida de que era
Nossa Senhora” (Documentação
Crítica de Fátima, doc. 82, p. 324).
No decurso da sua vida, a Ir. Lúcia
não teve só visões sensíveis ou aparições, mas foi sujeita aos três tipos de
visões acima referidos. As inspirações que receberá do Céu em resposta às suas
interrogações serão frequentemente uma perceção interior. Já a visão de Tuy (13
de Junho de 1929) deverá, pelo contrário, integrar-se no segundo tipo, pois a
Ir. Lúcia diz que viu, e não há nenhuma razão para duvidar do seu testemunho.
Mas as personagens ou objetos desta imagem não estavam presentes fisicamente,
em particular Deus Pai: portanto, dificilmente pode tratar-se de uma visão
sensível.
A visão do inferno pode igualmente
ser inserida nesta categoria, visto que, como nota o Comentário do Cardeal
Ratzinger, o fogo não se ateou na Cova da Iria! Claro que o inferno não esteve,
fisicamente, diante dos pequenos videntes: eles viram-no graças àquela luz que
emanava das mãos da Virgem.
Mas o facto de a visão do inferno ser
da categoria das visões imaginativas, não prova que o resto da visão o seja,
pois, como diz Adolfo Tanquerey, numa obra clássica sobre o assunto, nada
impede que haja diversas perceções diferentes no decurso de uma mesma aparição.
Esta dupla perceção já se produziu, aliás, na primeira aparição de 13 de Maio
de 1917. Pelo reflexo vindo das mãos da Virgem, os pastorinhos viram-se em
Deus: esta visão é muito provavelmente uma visão interior, que vem
acrescentar-se à visão sensível da Senhora. Nas aparições de 1917, é fácil
discernir as visões interiores, pois elas são precedidas de um gesto de
abertura das mãos da Virgem e por um raio de luz que emana das suas mãos, como
para materializar a graça da visão dada.
Mas as visões de Nossa Senhora são
seguramente visões sensíveis. É seguro que a Virgem Maria apareceu aos
pastorinhos sob uma forma exterior sensível. O carácter ofuscante das aparições
é também uma prova da realidade do corpo glorioso da Santíssima Virgem. A Lúcia
foi muitas vezes obrigada a baixar os olhos, tão viva era a luz que emanava da
Virgem. O Cón. Formigão perguntou-lhe:
– Por que razão não raro baixas os
olhos deixando de fitar a Senhora?
– É que ela às vezes cega (Documentação Crítica de Fátima, p. 58)
– É que ela às vezes cega (Documentação Crítica de Fátima, p. 58)
Na narrativa que fez da aparição de
13 de Outubro, disse:
“Veio no meio dum esplendor. Desta
vez também cegava. De vez em quando eu tinha de esfregar os olhos” (J. de
Marchi, Era uma Senhora mais
branca que o sol, p. 177).
Também os fenómenos físicos que
acompanharam os acontecimentos de Fátima e foram observados por numerosas
testemunhas, não podem ser frutos de uma visão imaginativa. O seu número é
impressionante. Esses fenómenos exteriores manifestam sem qualquer dúvida
possível a presença efetiva de uma pessoa celeste.
Não só os videntes, mas também muitos
daqueles que tiveram a graça de assistir (exteriormente) às aparições
observaram esses fenómenos físicos, e isto em todas as aparições e não somente
por ocasião do milagre do sol. Em parte nenhuma fora de Fátima, a Virgem rodeou
a sua vinda e autenticou a sua presença de tantos sinais tão extraordinários. E
essas testemunhas eram particularmente numerosas: cerca de 50 na 2ª aparição, 3
a 4000 na 3ª, 18 a 20.000 na 4ª, 25 a 30.000 na 5ª e cerca de 70.000 na última,
estando alguns por vezes a vários quilómetros do lugar das aparições!
Por ocasião dos acontecimentos de
Fátima, as testemunhas mais próximas puderam observar diversos fenómenos dificilmente
atribuíveis a visões interiores. Mas outros fenómenos puderam ser observados
por um grande número de testemunhas exteriores.
Foram eles os seguintes:
I – Relâmpagos, que sempre antecedem
as Aparições. Trovões, no momento preciso da Aparição, ou no seu termo, e cuja
origem parecia provir da azinheira.
II – Curvatura do arbusto, como se
tivesse estado coberto por um manto, e com as folhas todas inclinadas na mesma
direção (na segunda Aparição).
III – Perfume, de essência nova e
desconhecida, evolando-se do ramo da azinheira cortado dos Valinhos, e sentido
pela senhora Maria Rosa e circunstantes, após a quarta Aparição.
IV – Nubescente globo luminoso,
avançado de Este para Oeste, e deslizando majestosamente através do espaço, até
tocar a azinheira (na quinta Aparição).
V – Nuvem branca ou matizada, e de
vista agradabilíssima, que várias vezes se formou em torno dos Videntes, com
vaporizações de fumo ascendente até cinco ou seis metros de altura. E, isto,
por três vezes bem distintas, na mesma Aparição.
VI – Chuva evanescente de rosas, com
rosinhas brancas, maiores vistas de longe, e que, pouco a pouco, se vão
tornando mais pequenas, com o aproximarem-se do chão, até desaparecendo de
todo.
VII – Diminuição da luz solar em
pleno meio-dia, sem nuvens nem eclipses. Viam-se a Lua e as estrelas. Este
fenómeno verificou-se em todas as Aparições, à excepção da última. Quanto à
primeira Aparição, não se sabe.
VIII – Milagre do Sol, que, segundo
os testemunhos, consta de três fases:
- a) O Sol torna-se opaco, com reflexos de madrepérola; pode-se fixar sem dificuldade, havendo ausência absoluta de nuvens e de eclipse;
- b) Irradiações de cores, com rotação em feixes irisados que se difundem por todo o céu, semelhantes a fogo-de-artifício,
- c) Movimento do disco solar, como que aumentando, ao princípio e dando a sensação de se precipitar sobre a terra; em seguida, movimento de translação do disco sobre o firmamento, de relance, tanto em linha retilínea, como quebrada.
“Em geral, podemos dividir, em das
classes, todos estes fenómenos: a primeira consta de fenómenos instantâneos; a
segunda, de fenómenos estáveis. Os primeiros foram os relâmpagos e os trovões;
os segundos, todos os outros. Compreende-se desta forma que Fátima se tenha
imposto e triunfado…” (Sebastião Martins dos Reis, “Síntese crítica de Fátima”, Junta
Distrital de Lisboa, Boletim Cultural, 1987/68. p. 86-88).
O Cardeal J. Ratzinger foi eleito
Papa em 2005. O seu pensamento sobre Fátima mudou?
Os seguintes pronunciamentos falam
por si:
1. “Decorre hoje o nonagésimo
aniversário das APARIÇÕES de Nossa Senhora em Fátima. Com o seu veemente apelo
à conversão e à penitência é, sem dúvida, a mais profética das APARIÇÕES
modernas. Vamos pedir à Mãe da Igreja, Ela que conhece os sofrimentos e as
esperanças da humanidade, que proteja nossos lares e nossas comunidades”. (Papa
Bento XVI, 13/5/2007)
2. “Prova disto mesmo é este lugar
bendito. Mais sete anos e voltareis aqui para celebrar o centenário da primeira
VISITA feita pela Senhora «vinda do Céu», como Mestra que introduz os pequenos
videntes no conhecimento íntimo do Amor Trinitário e os leva a saborear o
próprio Deus como o mais belo da existência humana.” (Papa Bento XVI,
13/5/2010)
3. “Com a família humana pronta a
sacrificar os seus laços mais sagrados no altar de mesquinhos egoísmos de
nação, raça, ideologia, grupo, indivíduo, VEIO DO CÉU a nossa bendita Mãe
oferecendo-Se para transplantar no coração de quantos se Lhe entregam o Amor de
Deus que arde no seu. Então eram só três, cujo exemplo de vida irradiou e se multiplicou
em grupos sem conta por toda a superfície da terra, nomeadamente à passagem da
Virgem Peregrina, que se votaram à causa da solidariedade fraterna. Possam os
sete anos que nos separam do centenário das APARIÇÕES apressar o anunciado
triunfo do Coração Imaculado de Maria para glória da Santíssima. (Papa Bento
XVI, 13/5/2010)
4. «O meu pensamento vai para Nossa
Senhora de Fátima, de quem hoje recordamos a última APARIÇÃO. À Celeste Mãe de
Deus vos confio, caros jovens, para que possais generosamente responder à
chamada do Senhor.» (Papa Bento XVI, 13/10/2010).
Pároco de Santa Maria de Belém –
Mosteiro dos Jerónimos
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