Expresso
No seu mundo, futebol universitário, Paterno é um Bill Clinton ou um Michael Jackson. É um ídolo e os seus seguidores entram em negação: acreditam no que é emocionalmente necessário e não no que é objetivamente verdadeiro num transe coletivo. Se cada um pensasse na solidão da sua consciência, chegaria à verdade dolorosa. É por isso que precisam do transe coletivo
23 NOVEMBRO 2021 9:24
Quando rebenta um escândalo de pedofilia, a nossa primeira reação é a indignação com a ofensa em si e sobretudo com a duração da mesma. Os casos têm sempre anos e anos de prática continuada debaixo da aparente cegueira ou conivência das pessoas em volta. Tal como “Leaving Neverland” (Michael Jackson) e “Spotlight” (Igreja), o filme da HBO “Paterno” tenta explicar como é que se desenrola esse mecanismo de cegueira das pessoas que envolvem o abusador.
Paterno (Al Pacino) é uma lenda viva de uma das religiões americanas, o futebol (americano) universitário. Ao longo das décadas, Paterno transforma uma pequena universidade, Penn State, num símbolo de exigência académica e de sucesso desportivo. Forma uma escola desportiva que acolhe jovens desde tenra idade. É aqui que rebenta o escândalo: Jerry Sandusky, um treinador adjunto e reputado filantropo na região, começa a ser acusado de vários crimes de abuso sexual; são dezenas e ocorreram ao longo de quinze anos. A partir daqui, o filme analisa dois níveis de negação. Em primeiro lugar, a negação do público, dos fãs, dos estudantes de Penn, que, num movimento tribal, recusam acreditar que Paterno estava a par da situação. No seu mundo, futebol universitário, Paterno é um Bill Clinton ou um Michael Jackson. É um ídolo e os seus seguidores entram em negação: acreditam no que é emocionalmente necessário e não no que é objetivamente verdadeiro num transe coletivo. Se cada um pensasse na solidão da sua consciência, chegaria à verdade dolorosa. É por isso que precisam do transe coletivo.
O segundo nível de negação é do próprio Paterno. Durante muito tempo, pensamos que ele é só um obcecado com o trabalho, que só vê o jogo, um ingénuo. Mas começamos a perceber que não é bem assim. Percebemos que ele entrou em negação deliberada, chegando ao ponto em que desprotegeu os próprios filhos num dado momento. Porquê? Porque o abusador era um homem importante na região e importante para a manutenção do seu programa de futebol na faculdade? Porque não queria que escândalos beliscassem o seu trabalho? Porque a verdade pode ser demasiado dolorosa e não pode ser contada, aliás, nem sequer pode ser assumida no segredo da consciência? Ou porque muito simplesmente não quis saber, não achou que era importante saber o que acontecia a cinquenta jovens numa universidade com milhares e milhares ao longo das décadas?
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