quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022
INTERNACIONAL || Estratégia russa mudou o foco para Donetsk e Luhansk. Invadir, anexar ou reconhecer a independência? Qual a melhor opção para Putin?
Um militar ucraniano à frente de uma fila de tanques do exército, na base de Klugino-Bashkirivka, perto da fronteira com a Rússia FOTO: SERGEY BOBOK/AFP via Getty Images
INTERNACIONAL
Estratégia russa mudou o foco para Donetsk e Luhansk. Invadir, anexar ou reconhecer a independência? Qual a melhor opção para Putin?
A Rússia algum dia pensou mesmo anexar as regiões de Donetsk e Luhansk? A invasão militar ainda é uma opção? Tudo mudou quando a câmara baixa do parlamento russo aprovou esta terça-feira o reconhecimento das duas “repúblicas” como territórios independentes. Vai acontecer ou é só mais uma manobra de pressão? O foco da estratégia russa mudou – é preciso entender porquê
Share on FacebookTweet about this on TwitterShare on LinkedInEmail this to someone
08:22 16 Fevereiro, 2022 | Ana França
Os separatistas apoiados pela Rússia nas regiões de Donetsk e Luhansk — regiões do leste da Ucrânia conhecidas coletivamente como Donbass, bacia do rio Donets — romperam com o Governo ucraniano em 2014. Desde então autoproclamam estes territórios como “repúblicas populares independentes”. O problema é que nenhum país as reconhece como tal, nem mesmo a Rússia, que sempre negou ter tido papel nesta secessão.
Esta terça-feira, a câmara baixa do Parlamento russo, a Duma, aprovou um projeto de lei do Partido Comunista que visa dar ao Presidente Vladimir Putin o poder de reconhecer a independência das duas regiões. “Putin tem vários cenários que está disposto a usar, dependendo das circunstâncias. A decisão da Duma é um de vários caminhos. A Rússia tem lançado a falsa narrativa de que a Ucrânia está, de alguma forma, a pôr em risco a população russófona em Donbass, supostamente alvo de ‘genocídio’, inexistente, claro. É um falso argumento que serve, no entanto, para justificar este reconhecimento da independência”, diz ao Expresso o analista de risco militar Dionis Cenusa, do Centro para o Estudo da Europa de Leste.
O reconhecimento dos dois “países”, Donetsk e Luhansk, pode fornecer a Moscovo pretexto para uma intervenção militar aberta em apoio aos seus “novos aliados”, da mesma forma que hoje, 14 anos depois da invasão, mantém cerca de 10 mil militares nas regiões separatistas da Geórgia: Ossétia do Sul e Abecásia. A influência russa nestas regiões não trouxe prosperidade às populações russófonas. Os relatórios que tentam avaliar a proteção dos direitos humanos mostram o contrário.
Em janeiro de 2021, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos concluiu que é a Rússia que domina as duas regiões, por isso imputou a culpa de situações de prisão sem julgamento, assassínios, tortura e usurpação de propriedade que ali se multiplicaram. A Rússia reconhece a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul.
Forças ucranianas em treino na cidade de Chuguev, em Kharkiv, perto da fronteira russa FOTO: SERGEY BOBOK/AFP via Getty Images
“Penso sempre no que acontece nestas regiões e na Transnístria [território moldavo com características semelhantes]. Situações miseráveis que existem há 30 anos, governos pró-russos que mais ninguém reconhece, populações dependentes e empobrecidas, isoladas, porque não têm relação com nenhum outro país. Os acordos de associação que a UE tem com a Ucrânia, que fazem chegar dinheiro a estas regiões, foram diminuindo. Se houver independência oficial, vão mesmo deixar de chegar”, antevê Lívia Franco, professora e investigadora principal no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica.
Um jogo a dois tempos
Um deputado russo e ex-líder político de Donetsk, Alexander Borodai, disse à Reuters que, num cenário de reconhecimento da independência, os separatistas recorreriam à Rússia para os ajudar a “controlar partes de Donbass agora controladas pelas forças ucranianas”. Confirmando que é por aí que segue a esperança dos que, em Donbass, desejam uma integração mais forte com a Federação Russa. Em dezembro, o partido Rússia Unida (de Putin) aceitou os dois líderes separatistas como militantes. Denis Pushilin, chefe da separatista República Popular de Donetsk, afirmou que a ação prova que Putin vê as regiões como “parte da grande Rússia”.
Um membro das Forças de Defesa Territorial, as reservas das forças militares oficiais da Ucrânia, nas trincheiras perto de Avdiivka, no sudeste da Ucrânia FOTO: ANATOLII STEPANOV/AFP via Getty Images
Muitos governos ocidentais alinharam os discursos para alertar Moscovo de que qualquer movimento de forças militares através da fronteira ucraniana seria motivo para uma resposta muito severa, incluindo sanções financeiras. E esta é a primeira razão que leva a maioria dos analistas a duvidar que Putin assine o documento que a câmara baixa aprovou. “Ao contrário do que aconteceu com a anexação da Crimeia, aqui a Rússia tem de ponderar bem a equação custo-benefício, porque não há, nestes regiões, nada tão valioso como na Crimeia, que tem o principal porto militar russo, onde a marinha de guerra russa pode sempre entrar e sair. Nesse caso, mesmo com a possibilidade de sanções, entende-se que a Rússia tenha decidido ocupar e anexar. Aqui o que está em causa é manter o controlo político de Donbass”, explica ao Expresso a investigadora da Universidade Católica.
Ao mesmo tempo, o jogo continua aberto. “Considero que a Rússia nunca ponderou uma invasão em grande escala, até Kiev. Moscovo está a correr em duas pistas ao mesmo tempo: por um lado, não deixa escalar mais a parte militar, guardando espaço para a diplomacia; por outro, se precisar de mais projeção de poder nessas negociações, agita a possibilidade de entrada em Donbass ou este projeto político da independência”, explica Lívia Franco.
Modelo Kosovo
Dionis Cenusa encontra comparação com outro país que declarou a independência unilateralmente: o Kosovo. “O ‘cenário Kosovo’ tem elementos inerentes. Em primeiro lugar, o reconhecimento da independência é baseado no argumento de que a população (minoria) está em perigo sob o grupo maioritário. A Rússia tenta dizer, sem provas, que há um genocídio da minoria russa nestas regiões.”
Em segundo lugar, “o eventual reconhecimento dos territórios separatistas forçará a comunidade internacional a construir novas plataformas para unir Kiev e os territórios não reconhecidos para encontrar nova fórmula de coexistência. Isso pode significar o fim dos Acordos de Minsk, mas também significará o início de um novo processo, semelhante ao diálogo entre Pristina [capital do Kosovo] e Belgrado [capital da Sérvia, que ainda considera o Kosovo parte do seu território]”.
Putin não quer anular Acordos de Minsk
A Rússia nega ser parte do conflito, mas apoiou os separatistas de Donbass de diversas formas, inclusive com assistência militar secreta, ajuda financeira, e, mais recentemente, vacinas contra a covid-19. Desde 2014, Moscovo emitiu mais de 600 mil passaportes russos para residentes de Donbass. À Reuters, fonte do Ministério da Defesa ucraniano afirma que Kiev estima que haja 35 mil combatentes separatistas e 2000 forças regulares russas em Donbass, números que a Rússia contesta.
Depois de a Duma ter feito passar este decreto, a Ucrânia anunciou imediatamente, através do ministro dos Negócios Estrangeiros, que qualquer apoio à independência de Donetsk e Luhansk levaria à anulação dos Acordos de Minsk, um série de passos para a pacificação da zona, assinados primeiro em 2014 e, de forma mais bem-sucedida, em 2015, que a Ucrânia contesta. Kiev assegura que os aceitou numa altura em que se encontrava sob enorme pressão militar russa.
Que dizem os Acordos de Minsk?
Sob os termos deste documento, a Ucrânia deveria dar às duas regiões autonomia significativa em troca da recuperação do controlo da sua fronteira com a Rússia. Muitos ucranianos, e decerto a atual liderança, veem este acordo como uma autoestrada para a Rússia conseguir influenciar o Governo em Kiev, porque o estatuto especial que as províncias viriam a ter poderia redundar na alegoria do cavalo de Tróia. O voto destas regiões em decisões do Governo central ucraniano poderia ser forma de reforçar os interesses russos em Kiev ou de ajudar a promover uma viragem governativa para leste.
Ora, Putin tem aqui um problema, que Cenusa explica: “Já disse que é a favor da implantação dos Acordos de Minsk, o que significa que não assinará nenhum ato que reconheça a independência dos territórios separatistas. As ações da Duma e o ‘cenário Kosovo’ são apenas formas de pressão para que Kiev aceite os Acordos de Minsk”.
Lívia Franco concorda. “Uma das coisas que os Acordos de Minsk reconhecem é que a Constituição da Ucrânia deveria ser alterada para ter em conta a opinião das autoridades que governam hoje essas repúblicas. Moscovo, sabendo que a Ucrânia pode nunca aceitar tal coisa, força a situação, com uma incursão ou com a tal declaração unilateral de apoio à independência, que permitiria a Moscovo não perder a face, mostrar que tem poder”.
Nenhum dos académicos descarta a declaração de apoio à independência das repúblicas separatistas. “A anexação não tem utilidade para Moscovo, o reconhecimento dos territórios como independentes continua a ser a única coisa com vantagem, considerando que a Ucrânia não vai dar estatuto especial às províncias. Isso, sim, seria ideal para Putin”, considera Cenusa.
Não tendo havido anexação como na Crimeia, a verdade é que as forças separatistas têm mantido o predomínio com a ajuda de militares russos. Mais de 60% da população sente-se russa. “Esse reconhecimento pode acontecer, com a vantagem de a Rússia poder dizer que nem sequer teve de intervir militarmente, porque, de facto, é o que a população local quer.”
Como deixou de controlar o Governo de Kiev em 2013, depois dos protestos pró-Ocidente e da revolução Maidan contra o então Presidente pró-russo Viktor Yanukovych, “a Rússia tenta controlar as regiões leste da Ucrânia, que, observadas da janela do Kremlin, são fulcrais para a defesa da Rússia, territórios que, não sendo oficialmente russos, delimitam o espaço até onde o Ocidente pode ir”, diz a investigadora. Lembra a lição que Moscovo aprendeu com os Estados Bálticos, que se tornaram membros da NATO “sem avisar” e estão na fronteira com a Rússia, com presença de tropas da Aliança Atlântica.
O perigo de uma crise fabricada
Não parece haver caminho para regressar aos Acordos de Minsk. Não houve qualquer avanço no último encontro entre os países que compõem o chamado “Formato da Normandia” (Alemanha, Rússia, Ucrânia e França, que se reuniram informalmente pela primeira vez em 2014, no dia do desembarque das tropas aliadas em França). Oleksiy Danilov, secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia, disse à Associated Press que cumprir os acordos de Minsk significaria a “destruição” da Ucrânia.
O ex-secretário deste organismo, Oleksandr Danylyuk, escreveu no “Politico”, num ensaio sobre o conflito, que “o que Putin sabe (e o Ocidente ainda não entendeu) é que qualquer movimento da Ucrânia para reconhecer formalmente algum tipo de ‘independência’ em Donbass desencadeará protestos maciços em toda a Ucrânia”. Muitos ucranianos têm tentado alertar que o Kremlin pode usar a desestabilização que provoca para justificar uma invasão. “É possível que Moscovo alegue uma situação de instabilidade e anarquia perto da sua fronteira, e por isso alegue que precisa de agir preventivamente. Quando a Indonésia invadiu Timor-Leste, a desculpa foi essa, que havia grande instabilidade, que Lisboa estava a meio de um processo revolucionário e tinha perdido o controlo da situação. Foi a justificação que apresentaram nas Nações Unidas”, relembra Franco.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário