quinta-feira, 5 de maio de 2022

OPINIÃO - Putin equaciona declarar guerra porque sabe que está a perdê-la | Lourenço Pereira Coutinho - Historiador - EXPRESSO

OPINIÃO Putin equaciona declarar guerra porque sabe que está a perdê-la Lourenço Pereira Coutinho Lourenço Pereira Coutinho Historiador Ao declarar guerra, Putin está, implicitamente, e na sua visão muito própria do mundo, a admitir que a Ucrânia é um Estado equiparado ao russo. Só por si, tal significa uma derrota para o autocrata do Kremlin 5 MAIO 2022 9:54 Como antigo agente do KGB, Putin está formatado para comunicar de forma dissimulada. À falta de informação transparente, todos os sinais vindos do autocrata do Kremlin pedem pois para ser analisados com atenção. Na semana passada, apontei neste espaço um conjunto de atitudes russas durante a visita de Guterres a Moscovo que, creio, demonstram a falta de consideração que Putin tem pelo secretário-geral da ONU. Também, a terminologia empregue pelo Kremlin precisa de ser descodificada. Aparentemente, a qualificação da invasão da Ucrânia como “operação especial”, e não como “guerra”, parece um pormenor irrelevante. Mas não foi por acaso que Putin empregou a primeira quando invadiu a Ucrânia e que agora equaciona usar a segunda. Que nuances entre estes termos? O conceito de “operação especial” não é novo para o Kremlin. Em dezembro de 1979, um contingente de soldados soviéticos, que incluiu agentes do KGB, entrou no Afeganistão dissimulado pelos uniformes do exército deste país. Os invasores ocuparam então zonas estratégicas em Cabul e depois mataram o primeiro-ministro Hafizullah Amin. Neste caso, o objetivo não foi a conquista de território nem a permanência em território afegão, mas antes provocar uma mudança na cúpula política do país, daí que a ação tenha sido qualificada de “operação”. É sabido como evoluiu esta “operação especial”. Nos dez anos seguintes, os soviéticos travaram uma guerra infindável contra os mujahidin, o que desgastou o regime comunista e contribuiu para o seu colapso. Putin, que procura inspiração na História da Rússia imperial e da União Soviética, saberá como uma “operação especial” destinada a durar pouco tempo pode transformar-se numa guerra sem fim e, em última análise, no colapso de um regime. Para além da repulsa da maioria dos russos pela palavra “guerra”, Putin tem outros motivos para procurar evitá-la. Primeiro, porque a declaração de guerra significa o fracasso da “operação especial” que, esperava, seria executada num curto espaço temporal. Depois, porque o termo “operação especial” significa que o Kremlin não está a considerar a Ucrânia como um estado igual. Uma “operação especial” faz-se contra uma região rebelde que se pretende punir. Não faz pois sentido que um Estado invada outro e afirme que está a executar uma “operação especial”. A invasão de um Estado por outro apenas pode significar que estes estão em guerra. A terminologia empregue por Putin confirma assim que este encara a Ucrânia como parte integrante do mundo russo, o que aliás não é novidade. Também, e em teoria, uma “operação especial” não dá lugar a negociações de paz Estado a Estado. Em termos formais, não pode haver paz se não tiver existido “guerra”. Ao declarar guerra, Putin está, implicitamente, e na sua visão muito própria do mundo, a admitir que a Ucrânia é um Estado equiparado ao russo. Só por si, tal significa uma derrota para o autocrata do Kremlin. Após mais de dois meses de conflito, e sem que se vislumbre fim à vista, correm rumores que Putin vai declarar formalmente guerra à Ucrânia no dia 9 de maio, data que assinala a vitória russa na “grande guerra patriótica” contra a Alemanha nazi. Com a declaração de guerra, o Kremlin pode mobilizar reservistas, cerca de 2 milhões, mas esta vantagem é aparente, pois apenas algumas dezenas de milhar estão aptos para entrar imediatamente em combate. Também, uma declaração de guerra torna insustentável o absurdo argumento russo que não houve uma invasão da Ucrânia. Se o governo do Kremlin já dificilmente escaparia ao julgamento dos tribunais internacionais, com a declaração de guerra tal torna-se irreversivelmente impossível. Putin não tem pois qualquer interesse em declarar guerra à Ucrânia. Se o equaciona fazer é porque, paradoxalmente, sabe que está a perdê-la.

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