terça-feira, 3 de maio de 2022

Todos querem a guerra - Miguel de Sousa Tavares . EXPRESSO edição 2583

MIGUEL SOUSA TAVARES Todos querem a guerra A imagem de António Guterres no Kremlin, sentado na mesa punitiva de seis metros de Vladimir Putin, é penosa, quase humilhante. Pelo homem em si e pelo cargo que ocupa, o de mais alto dirigente da única organização que representa politicamente todas as nações do mundo e cuja razão de ser é a manutenção da paz. Tão tardia quanto previsivelmente inútil, a viagem do secretário-geral da ONU a Moscovo serviu apenas para se fazer distratar por Putin, não constando sequer que se tenha atrevido a sugerir-lhe um acordo de paz para os tempos mais próximos. Mas Guterres pôs-se a jeito para isso quando, logo no dia seguinte à invasão da Ucrânia pela Rússia, tratou de a condenar, em lugar dos habituais apelos à paz e à conciliação, oferecendo-se como mediador entre as partes. Escreveu-se que ele tinha tomado a posição certa no conflito, mas não é isso que cabe a um secretário-geral da ONU: as condenações ficam para a Assembleia-Geral e o Conselho de Segurança, o secretário-geral deve reservar as suas opiniões pessoais para salvaguardar o seu papel de negociador do conflito. Os russos não lhe perdoaram essa tomada de posição, agravada ainda pela sua condenação imediata do massacre de Bucha, sem esperar pelos resultados de inquéritos independentes, nomeadamente do TPI, um órgão da própria ONU com competência para tal. A partir daí, o próprio Guterres desistiu de qualquer tentativa de ser agente da paz nesta guerra e foi só sob pressão de antigos e actuais quadros superiores da ONU que se dispôs a ir a Moscovo, mas tão certo de sair de lá de mãos a abanar que também foi lá sem nada levar de novo para propor. Dias antes, Guterres também assistiu em silêncio ao rasgar dos compromissos da Espanha para com o Sara Ocidental, quando Pedro Sánchez escreveu ao rei de Marrocos a aceitar, de facto, a anexação do território juridicamente ainda sob administração espanhola. António Guterres, que, quando PM de Portugal, foi determinante para convencer Bill Clinton e a ONU de que Timor-Leste — também anexado pela Indonésia numa situação jurídica em tudo idêntica à do Sara Ocidental — tinha o direito a expressar-se livremente em referendo, desta vez ficou calado perante a traição de um dos “nossos”, apesar de há vá­rios anos estar em vigor uma resolução do CS da ONU que impõe um referendo semelhante no Sara Ocidental e estar instalada uma missão internacional com o objectivo de o levar avante. Foram semanas desastrosas para descredibilizar a imagem de um mínimo de utilidade e eficácia sem a qual a ONU não faz sentido e de que provavelmente ela jamais recuperará. Pena que tenha acontecido sob a presidência de um português e de alguém tão notável como António Guterres. ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO 2 - Verdade se diga, porém, que a missão de António Guterres em Moscovo — se é que ela alimentava a secreta esperança de arrastar a Rússia para a mesa das negociações — era virtualmente impossível. Não apenas por ter arrancado mal e chegado tarde, mas também por ter chegado a más horas. Nenhum dos três lados em conflito — Rússia, Ucrânia e NATO — quer a paz agora. Se algum dia esteve disposto a aceitar a paz em troca da renúncia da Ucrânia em aderir à NATO, do reconhecimento da anexação da Crimeia ou da independência do Donbas, ou de tudo isso, agora, com o seu Exército humilhado, o seu país transformado num Estado pária e ele próprio insultado como “assassino”, “criminoso”, “genocida” ou “bandido” pelo Presidente dos Estados Unidos, Putin não parece disposto a aceitar menos do que aquilo que possa proclamar internamente como uma vitória militar no terreno. A única dúvida é a geografia dessa vitória: chegar-lhe-á o Donbas ou só se contentará se conquistar também o sul da Ucrânia, Odessa incluída? E até onde estará disposto a ir para tal — até à III Guerra Mundial, como avisou o sibilino Lavrov? Do lado ucraniano, Zelensky fala cada vez menos em negociações e cada vez mais em aviões, tanques, armas pesadas. Inebriado pelo sucesso da resistência do seu Exército perante o invasor e incitado pela assistência militar e a opinião pública ocidental, Zelensky alimenta hoje um sonho que se diria impensável há três meses: o de derrotar o Exército russo. Nenhum dos três lados em conflito — Rússia, Ucrânia e NATO — quer a paz agora Quanto à NATO, a terceira parte neste conflito e cada vez mais abertamente envolvida nele, expliquei aqui há três semanas as razões pelas quais esta guerra na Ucrânia lhe serve, e aos Estados Unidos, de excelente campo de estudo, de treino e de ensaio das forças do inimigo e das suas pró­prias. Aquilo que começou por ser uma ajuda à Ucrânia com o objectivo de retardar o avanço russo transformou-se, com as inesperadas dificuldades deste, numa irresistível tentação de ir muito mais além: convencer os ucranianos de que, bem armados pela NATO, podiam derrotar os russos e, em qualquer caso, podiam prestar ao Ocidente o inestimável serviço de desgastar profundamente o aparelho militar russo. Inadvertidamente ou não, o secretário da Defesa americano, Lloyd Austin, de visita a Kiev esta semana, deixou escapar qual é, actual­mente, o objectivo dos Estados Unidos, pela mão da NATO: “Queremos ver a Rússia enfraquecida ao ponto de deixar de poder fazer coisas como a invasão da Ucrânia.” Por seu lado, o secretário de Estado, Antony Blinken, também não conseguiu disfarçar o seu entusiasmo perante o Congresso, declarando que se a Ucrânia passar ao contra-ataque — por exemplo, no Donbas ou na Crimeia — a NATO continuará a apoiá-la, e já não para defesa própria. É por isso que agora os alvos militares preferenciais dos russos são os comboios e as linhas férreas que trazem o material militar da NATO para a Ucrânia e os locais onde ele é armazenado. E o perigo é que passem a visar os mesmos alvos fora das fronteiras da Ucrânia, desencadeando a tal III Guerra Mundial de que falou Lavrov. Eis então onde estamos. Um urso ferido perseguido por dois caçadores que já não querem apenas expulsá-lo do seu território, mas dar-lhe uma sentença de morte. Só que o urso ferido continua perigoso, talvez até mais perigoso, e carrega à cintura uma bolsa de milhares de armas nucleares que podem explodir com ele. E o mais impressionante de toda esta bebedeira de morte é que nenhuma das três partes, nem mesmo a Ucrânia, parece querer deter-se perante as imagens de destruição paulatina de um país e de milhões de vidas destroçadas. 3 - O Irão pode voltar a ser o próximo foco de destabilização mundial. O Irão é um país maravilhoso, com um povo submetido a um regime teocrático demencial e ditatorial. Apenas para poderem amea­çar os seus vizinhos e o mundo, os ayatollahs resolveram a certa altura dotarem-se da bomba atómica, iniciando o processo de enriquecimento de urânio. Obama conseguiu negociar um acordo com o aval de todos os membros do CS da ONU mais a Alemanha, decretando a suspensão do processo a troco do levantamento das sanções económicas ao país, que só afectam o seu povo. Israel tentou tudo para boicotar esse acordo, propondo uma via alternativa, que se traduziu, por exemplo, no espectacular assassínio do cientista que dirigia o programa nuclear do Irão. Então, Trump rasgou o acordo e o Irão voltou ao enriquecimento de urânio e os Estados Unidos às sanções, a que obrigaram todos os países. Chegado ao poder, Biden quis retomar o acordo e, após um ano de negociações que agora pareciam à beira de um desfecho finalmente feliz, Israel voltou a conseguir emperrar tudo, do lado de fora, exigindo que os Guardas da Revolução irania­nos continuem na lista das organizações terroristas dos Estados Unidos. Ao que parece, Biden vai aceitar a exigência israelita sobre a política interna americana, com isso permitindo que o Irão prossiga os seus esforços para se dotar da arma atómica e continuando a condenar os iranianos aos efeitos das sanções económicas de que não têm culpa alguma. Ora, que os Guardas da Revolução são uma organização sinistra — e provavelmente classificável como terrorista, para efeitos internos — não há dúvida. Mas alguém se lembra de atentados terroristas cometidos por eles no exterior? Eu lembro-me, sim, dos talibãs, em cujas mãos Biden deixou o Afeganistão, ou dos terroristas do Daesh, combatidos por ninguém mais do que os curdos na Síria, ao lado dos americanos e salvando imensas vidas americanas, e depois abandonados por Trump à fúria vingativa do “aliado” Erdogan, da Turquia. No mundo em que vivemos, os conceitos de amigos e inimigos, aliados e adversários, terroristas e combatentes pela liberdade variam conforme a geografia, o tempo e os protagonistas. Mas parece que agora, subitamente, fez-se luz em muitos espíritos e tudo se tornou exemplarmente simples: há os “nossos” e os “outros”. Como alguém explicava há dias, o acolhimento aos refugiados ucranianos (que eu aplaudo) é devido porque eles “são dos nossos”, e por isso a Polónia já recebeu três milhões deles. Mas os milhares que a Polónia mantém escondidos de todos os olhares em campos cercados de arame farpado na floresta — entre eles, curdos e afegãos fugidos dos massacres de Assad e Erdogan ou dos talibãs — já serão dos “outros”, e por isso não se fala deles. Ficamos entendidos, não há nada como simplificar. Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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