quarta-feira, 2 de novembro de 2022
Ferro Rodrigues - A primeira figura da tragicomédia nacional . Jornal O DIABO
Ferro manda calar deputados quando não concorda com eles, fala com a arrogância de quem se considera dono do hemiciclo, insiste em rituais políticos quando todo o País está trancado em quarentena, sonha acordado com cabalas contra si e contra “Abril” e tornou-se tão azelha e inconveniente que até camaradas seus se sentem incomodados. Algo não está bem na cabeça do presidente da Assembleia da República.
Ferro Rodrigues, nascido na burguesia citadina lisboeta, estudou no Lyceé Français e no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, fazendo depois carreira como economista em organismos do Estado. Tornou-se politicamente activo como esquerdista em 1969 (tinha 20 anos), ao ser eleito para os corpos gerentes da Associação de Estudantes do seu Instituto, associação a que viria a presidir em 1971 e 1972.
Praticante da palavrosa conspirata de café e de escritório, que então era apanágio do reviralho, e exibindo como coroa de glória ‘antifassista’ uma detenção episódica numa manifestação do 1º de Maio, em 1973, Ferro Rodrigues era nos tempos da Outra Senhora um excelentíssimo desconhecido; tão desconhecido que o Estado ‘fassista’, ignorando os seus devaneios ideológicos, continuou calma e benemeritamente a dar-lhe emprego e a pagar-lhe o ordenado.
Por alturas do 24 de Abril, Ferro Rodrigues não passava de mais um conspirador vocacional, como tantos outros filhos-família que competiam entre si para mostrar que eram mais “corajosos”, “originais” e “revolucionários” do que o vizinho. Talvez alardeasse um esquerdismo ligeiramente excessivo para o estatuto económico-social que exibia – mas, nesses tempos, quanto mais ‘shocking’, melhor. Era o tempo das calças à boca de sino, não esqueçamos, símbolo máximo dos excessos desnecessários.
Ferro Rodrigues esteve entre os fundadores do Movimento de Esquerda Socialista (conhecido pelo acrónimo MES), pouco depois do 25 de Abril, num naipe em que se destacavam o arquitecto Nuno Theotónio Pereira (por sinal, sobrinho de um ministro de Salazar), o engenheiro João Cravinho (por sinal, antigo assessor do ‘fassista’ Marcello Caetano na Presidência do Conselho) e os advogados da última moda Jorge Sampaio (por sinal, filho de um antigo director-geral do ‘fassismo’) e José Manuel Galvão Teles (por sinal, sobrinho de outro ministro de Salazar). Era uma gente “bem” que apenas mantinha o luxo de navegar na extrema-esquerda, luxo aliás comum entre “católicos progressistas” (outra espécie de que me ocuparei num outro dia), alguns dos quais também estiveram no parto do MES (lembro, por exemplo, Manuel de Lucena e Nuno de Bragança).
Formaram, pois, o seu clube privativo, que se apresentava eticamente à sociedade como filantrópico, já que os seus dirigentes poderiam ter-se instalado comodamente à direita mas faziam o sacrifício de abraçar o marxismo-leninismo por amor aos pobrezinhos. Tão queridos!
A papelada produzida por esta trupe seria hoje de rebolar a rir, se não marcasse um período sinistro da História recente de Portugal. Entre comunicados, panfletos e “palavras de ordem”, o MES apoiou tudo o que era mau – os “saneamentos” políticos, a anarquização das Forças Armadas (“em frente, pelo exército popular!”, diziam eles), o assalto ao poder (“contra os órgãos de poder do Estado burguês”, entre eles a “Assembleia burguesa”), as ocupações selvagens de casas, de terras, de empresas e de jornais, as violências físicas e as intimidações, o rol completo dos desmandos que se seguiram ao 25 de Abril.
O delírio era tal que, ao fim de poucos meses, em Dezembro de 1974, um grupo de dirigentes se afastou da linha extremista dominante para ir formar outro clube, ligeiramente menos “proletário”, a chamada Intervenção Socialista. Era o “grupo do Flórida”, por referência ao hotel lisboeta onde Sampaio e companhia se reuniam para traçar os destinos da humanidade, entre duas flûtes à Champagne.
Mas Ferro Rodrigues ficou, empedernido no Comité Central, e haveria de ficar até ao fim próximo: é a sua costela trágico-cómica de patinho feio do PREC. Estava entre a meia dúzia de dirigentes máximos quando o MES disputou as primeiras eleições legislativas, em 1975, obtendo 58.248 votos em todo o país (um por cento). No sufrágio seguinte, em 1976, o descalabro foi ainda maior: 31.332 votos (0,6 por cento). E assim teria continuado, em plano inclinado até ao arraso final, se o astuto Comité Central não tivesse tomado a decisão de deixar de concorrer às “eleições burguesas”, furtando-se de todo ao escrutínio do povo “reaccionário”. Quando correu os taipais, em 1981, o patético MES tinha um número desconhecido de militantes – provavelmente, um número igual ao total de membros do Comité Central.
Nesta altura, Ferro Rodrigues era mais um desempregado político. Mantivera contactos com os kamaradas da Intervenção Socialista, apoiara a candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho à Presidência da República, ajudara a criar outro clube inorgânico (a fantomática Nova Esquerda), mas daí nada vinha de palpável. Estes grupelhos, que se representavam a si mesmos e aos primos, precisavam da mãozinha de quem os ajudasse a trepar na árvore da política. E foi a mão de Mário Soares, que eles tinham passado anos a morder, que acabou por trazê-los à tona em 1986.
Num célebre jantar no restaurante Porto de Abrigo, ao Cais do Sodré, Sampaio, Ferro e as respectivas cangalhadas resolvem por uma vez esquecer o seu sacrossanto esquerdismo e aderem à odiada “democracia burguesa”: filiam-se todos no PS. De então em diante, abrem-se para os antigos marxistas-leninistas as portas ‘fassistas’ da política “reaccionária”. Às tantas, damos com Ferro a professor universitário. De repente, é deputado. Em 1989, vemo-lo a representar a direcção socialista na negociação directa com Álvaro Cunhal de um acordo de coligação PS/PCP para a Câmara de Lisboa. Em 95, sob o inefável e seráfico Guterres, sobe ao Governo. E em 2002, tendo feito o seu hábil caminho no aparelho socialista, é eleito secretário-geral do PS. A sua moção populista ao Congresso seguinte foi já consagrada com uma votação à Kim Il-Sung pelos 1.500 delegados socialistas; a sensata moção alternativa, proposta pelo ex-deputado Henrique Neto, obteve apenas dez votos. Chegava o tempo da gritaria.
Mas aquele ar de triste sofredor de Ferro Rodrigues, aquela expressão retorcida de pessimismo e derrota que ele sempre traz afivelada, tem uma explicação: é que ele é realmente um triste e sofredor pessimista derrotado e retorcido. E teimoso, por acréscimo ideológico. Em 2002 chegou a líder do PS, sim, mas de nada lhe serviu a vitória. Varrido em eleições legislativas pelo insignificante Durão Barroso, Ferro Rodrigues penava em fel na oposição quando o seu porta-voz, Paulo Pedroso, foi preso no âmbito do caso Casa Pia. O nome do líder do PS chegou a ser mencionado, mas sem qualquer concretização judicial (é desse período uma expressão sua sobre o segredo de Justiça que uma Senhora não poderia repetir sem corar, mas que mostra o respeito que ele tem pela Justiça “burguesa”). Por fim, descredibilizado, mais uma vez derrotado e ignorado, amargurado por Sampaio ter chamado Santana Lopes ao Governo quando Durão Barroso fugiu a abocanhar um cargo na Europa, Ferro Rodrigues demitiu-se e abocanhou ele próprio um tacho enquanto era tempo: o cargo de representante permanente de Portugal junto da OCDE, em Paris, onde se manteve burguêsmente entre 2005 e 2011. Regressou então ao parlamento ‘fassista’, sempre triste e amargo, atravessando a legislatura a insultar o Governo de Pedro Passos Coe-
lho. Esta foi a sua credencial de acesso à presidência da Assembleia da República.
O Partido Socialista indicou esta sorumbática criatura para o cargo, em 2015, por uma razão simples: era um apoiante entusiasta da solução da geringonça e, portanto, seria no parlamento um garante de que as coisas corriam sobre rodas oleadas. Antigo corifeu da extrema-esquerda, tinha boa aceitação nos círculos marxistas-leninistas-estalinistas-trotskistas e era também, aos olhos do PC e do BE, um garante da “boa vontade” do PS. Entrou com pezinhos de lã no exercício do cargo, fazendo a Costa os fretes políticos de que este precisou sem se tornar excessivamente notado. Posicionava-se, assim, para uma reeleição em 2019, embora o seu cadastro de exaltado ex-MES ainda fizesse torcer alguns narizes no Largo do Rato.
Em 2019, Ferro Rodrigues já tinha prestado à geringonça os serviços de que esta precisara e, do ponto de vista do malabar Costa, podia ser mantido no cargo ou descartado, era indiferente. Olhando à volta, contudo, não havia senadores que se destacassem como alternativa. As únicas excepções eram Carlos César (que manifestava crescente apetência pelo lugar) e João Soares (que noutras circunstâncias talvez não se importasse de aceitar).
Abra-se aqui parêntesis para referir que João Soares ficara magoado com o episódio da saída do Governo por causa de uma tirada literária sobre bengaladas no Facebook, e desejava, por isso, voltar a ganhar independência e distância como figura de proa das hostes moderadas (a chamada “ala direita do PS”, que vai aos toiros, detesta o MPLA, gosta da boa mesa e de senhoras bonitas e mantém contacto descontraído com “perigosos reaccionários” – uma “ala direita” em que alinham, com maior ou menor compromisso, Jaime Gama, Francisco de Assis, Sérgio Sousa Pinto e outros descontentes). Estava, portanto, fora da corrida e nem sequer quis entrar nas listas eleitorais do partido.
Assim, no momento de preparar candidaturas à presidência parlamentar, o querido líder fez saber que indicaria Ferro Rodrigues, não porque o amasse profundamente, mas para se ver livre da única alternativa praticável, o indesejado Carlos César. Este, também ligado à “ala direita” do partido, vinha dando sinais crescentes de inquietude, ameaçando pôr fim ao idílio com António Costa e questionar a continuação do entendimento com a extrema-esquerda, e isso não convinha mesmo nada. Um outro argumento, aos olhos de Costa, aconselhava o afastamento de Carlos César: a sua fama (e, ao que se diz, alto proveito) de pouca preocupação com a ética política e um longo rabo de palha de empregos e sinecuras propiciados a amigos e, sobretudo, familiares. Esta fama, exposta com ênfase na imprensa, ameaçava manchar perigosamente o cartão de visita de um homem como Costa, que já de si tinha sido, por sua vez, braço direito do hoje arguido Pinto de Sousa. Portanto, avançou Ferro.
Só que o Ferro da presente legislatura não é já o Ferro da legislatura anterior. Vendo quatro anos limpos à sua frente, certamente o encerramento de uma carreira política recheada apenas de fracassos, para ele chegava a hora da vingança. Nada tendo já a perder, pretende hoje desagravar o marxista-leninista falhado do MES, o líder falhado de um PS que ele esquerdizou para conduzir à derrota, o deputado e o ministro “burguês” sem história, o diplomata acidental de quem ninguém se lembra, o homem azedo, de fácies horrível e trejeito biliar que percebeu só ter uma maneira de ficar na história: pela negativa. Chamam-lhe extremista? Deixá-los chamar! Excede-se e torna-se uma caricatura de si mesmo? Ele quer lá saber! Acham que excede todos os limites? Ainda não viram nada!
Porque este é que é o verdadeiro Eduardo Ferro Rodrigues: o homem que estudou no capitalismo com a ideia de um dia o destruir; o burguês que se nega a si mesmo para renascer na ditadura do proletariado (não como proletário, cruzes canhoto!, mas como ‘quadro’ que ensina o b-a-ba às massas); o delegado do Comité Central que apoiou as ocupações, os “saneamentos”, as comissões revolucionárias de moradores, e por isso ganhou cadastro na anarquização de Portugal; que exigiu a “nacionalização” das empresas e o “controlo operário”, e por isso se tornou cúmplice na falência da economia; que exultou com a prisão dos ‘fassistas’, que saudou o cerco e sequestro ao comício do CDS no Palácio de Cristal, que apoiou os ocupantes do jornal ‘República’ contra Soares e demais “conspiradores contra-revolucionários” (andava então a Mãezinha do actual primeiro-ministro a escrever em jornais “reaccionários”, como ‘A Luta’); que esteve ao lado das “campanhas de dinamização” do MFA para “lavar o cérebro” ao povo; que se perfilou nos Grupos Dinamizadores da Unidade Popular (GDUP), ao lado da estalinista UDP, da frentista FSP e do PRP, que viria a celebrizar-se nas Brigadas Revolucionárias, responsáveis por crimes de sangue; que com a ridícula representação dos seus 30 mil votos alinhou com Costa Gomes, Vasco Gonçalves, Saraiva de Carvalho, a 5ª Divisão, tudo o que de mau, de pérfido (e, já agora, de anti-democrático) o 25 de Abril produziu. Porque este é o autêntico Ferro Rodrigues: aquele que foi derrotado em 25 de Novembro de 1975 e anda há 45 anos a tentar (sem conseguir) digerir a derrota.
Não me surpreende que dali, daquele lugar a que o alcandoraram, e de onde olha o hemiciclo “de cima”, Ferro Rodrigues se sinta rodeado de “reaccionários”. A sua atitude para com os partidos menos à esquerda, de sobranceria e até rude má-educação, não indica outra coisa. Quando, há tempos, admoestou desabridamente um deputado populista argumentando que ele usava excessivas vezes a palavra “vergonha”, não foi o presidente de um parlamento democrático que falou: foi o velho rezingão do Comité Central do MES, ofendido pela simples ideia de um ‘fassista’ ter assento em São Bento. Muitos pensaram que a diatribe alcançava apenas André Ventura. Ingenuidade! Chegou agora a vez do CDS, cujo deputado João Almeida, sempre tão cordato e amiguinho do sistema, também ficou a saber como elas mordem. Almeida diz agora que Ferro “acha que é dono de valores, do regime, e dono do Parlamento”. Exactamente: é isso mesmo que ele acha.
De aqui em diante, tendo conseguido afirmar-se como tonto de serviço e bufão sem emenda, só podemos esperar ainda pior de Ferro Rodrigues. Já depois da teimosia patetóide em torno da sessão do 25 de Abril no parlamento, quando se esperava que metesse a viola no saco para não fazer mais estragos, Ferro voltou à guerrilha para descartar o uso, nessa mesma sessão, das máscaras faciais que Costa anda a recomendar aos portugueses. “Então íamos mascarados para o 25 de Abril?” – atirou Ferro, desafiador, a ver quem lhe respondia à provocação. Na própria sessão voltou à carga, agora citando Sérgio Godinho e Luís Sepúlveda, dois “autores” de estimação do cosmos em que ele próprio voga, como satélite perdido em busca do ponto de colisão. Não, o ton-ton do Comité Central não vai ficar por aqui.
O líder do PS e o Presidente da República terão agora de beber o cálice até à última gota: um escolheu-o para o cargo, o outro apaparica-o com elogios. Cumplicidades a este nível pagam-se caras, na vida pública. A “política burguesa” tem destas coisas.
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