domingo, 13 de novembro de 2022

GUSTAVO CARONA - MÉDICO SEM FRONTEIRAS - O relato da primeira história que viveu = Vale a pena ler com toda a atenção esta descrição de um ser humano extraordinário!

Começo aqui a contar-vos a primeira história de muitas que poderiam ser contadas sobre a minha estadia no Congo, onde trabalhei como médico anestesista para os Médicos Sem Fronteiras, numa região chamada Norte Kivu, na cidade de Masisi, perto da fronteira com o Ruanda. Região esta muito complicada, pois tem sido inocentemente castigada por uma guerra terrível, que teima em não parar e que terá já matado nos últimos 15 anos cerca de 5 milhões de pessoas… E como sempre quem mais sofre nestes tristes cenários, são os civis inocentes: mulheres, crianças, idosos…. cuja sorte quis que nascessem numa das piores zonas do planeta para se viver. Mas a vontade de viver, sorrir, amar, ter filhos e tudo o mais que caracteriza a magia do Ser Humano está bem presente nesta gente que tem muita vontade de viver e dar vida! E aqui vai uma história que, para mim, prova isso mesmo… No local onde eu estava a trabalhar, como muitos outros em África, uma das cirurgias que realizávamos mais frequentemente era a cesariana, dado a taxa de natalidade ser muito elevada e, por variadíssimas indicações, muitas vezes éramos então chamados a intervir para que pudéssemos salvar a mãe, a criança ou ambos. Como tantas outras vezes fui chamado ao bloco operatório de urgência a meio da noite, cansado de muitos dias de trabalho árduo, quase sem intervalos…. Fiz uma raquianestesia, ou bloqueio subaracnoideu para os entendidos ou, para os desentendidos, uma picada nas costas que anestesia toda a zona inferior ao umbigo, querendo com isto dizer que a futura mãe estava acordada e a ver e ouvir aquilo que podia…. Por falta de monitorização do feto, aconteceu aquilo que também muitas vezes me aconteceu neste hospital, que foi ter de fazer a reanimação neonatal… Mais uma vez trocado por miúdos, o feto estaria já a sofrer dentro do útero e a cesariana já veio tarde…. por sorte ou por azar estava lá eu… Com alguma formação sobre o assunto, mas pouca prática, pois nos nossos hospitais do mundo desenvolvido tal suceder é muito mais raro…. Mas este já então recém-nascido precisava de reanimação activa dado o sofrimento intra-uterino, para ajudar nesta fase que para uns é tão difícil ou mesmo fatal, que é a primeira vez que respiramos…. Normalmente uma simples estimulação táctil é suficiente para dar este empurrãozinho ao bebé. Para alguns é necessário a ventilação através de uma máscara, e quando esta se mostra insuficiente…. e temos sinais de que a oxigenação não está a ser adequada…. a frequência cardíaca teima em baixar, o que faz com que o cérebro deste novo ser possa ter danos irremediáveis por falta de oxigénio nas células cerebrais…. e muito rapidamente, sim, porque tudo isto são segundos ou poucos minutos de actuações e decisões difíceis, há que partir para uma forma de oxigenação mais eficaz com a colocação de um tubo através da boca na traqueia, actuação esta que tanto caracteriza o médico anestesista…. O que vocês vêem nesta fotografia é então já o final destes momentos de stress que felizmente têm um final feliz como se pode ver pelo tom rosadinho da pele e lábios deste bebé…. a minha mão que parece gigante ao pé deste mais recente congolês…. um estetoscópio… que me serviu para avaliar a ventilação deste pequenino, que é de tamanho adulto, pois não havia pediátrico…. e mais grave ainda para quem está minimamente ligado ao meio é o tamanho da lâmina do laringoscópio (mas foi esta que tive de usar, adaptando-me ao que tinha)…. esse aparelho metálico que vêem no canto superior da fotografia e que serve para a visualização directa da laringe e da traqueia, para posteriormente eu introduzir o tubo na traqueia que, permitindo uma ventilação e oxigenação muito mais eficaz, terá salvo a vida a este bebé…. Como disse, toda esta história acaba bem…. o recém-nascido respira já sem a minha ajuda, sem ajuda de tubos e cheio de força, espero eu, para um dia contribuir para um Congo melhor… talvez esteja a sonhar demais… mas uma das lições que aprendi e reforcei todos os dias é que há sempre que pensar positivo com muita força. Calma, esta história não acaba aqui… Durante todos os minutos da reanimação do recém-nascido, onde tive de actuar muito rápido e o stress do momento tomou conta das minhas acções, não pensei que a mãe estava bem acordada a ver tudo o que se estava a passar, e todo o meu esforço para que este bebé fosse capaz de chorar com vigor, que é tudo o que queremos depois de cortar o cordão umbilical. Imagino o que pensará uma mãe que, deitada numa mesa de operações, com metade do corpo imobilizado, com um lençol que a impede de ver a cirurgia propriamente dita, mas que ao flectir o seu pescoço para a esquerda vê durante escassos, mas provavelmente eternos minutos, este estranho branco vindo sabe-se lá de onde, às tantas da madrugada, dedicar tanto do seu esforço para que o seu filho nasça saudável nesta zona do planeta que parece ter sido esquecida pelo mundo…. Infelizmente a barreira linguística impede-me de saber o que passa pela cabeça desta mulher que, dentro do azar tenha tido a sorte de existir um hospital dos médicos sem fronteiras naquela zona de guerra aberta…. Quando já tenho a certeza de que o bebé está são e salvo, volto as minhas atenções para a mãe, e como a comunicação verbal era impossível (por eu não falar Swahili) como muitas outras vezes tinha de utilizar outra forma de comunicar com os pacientes e então passei a minha mão pela sua testa e cabelo acariciando-a, sorrindo e passando a mensagem que estava tudo bem, e o perigo estava longe do seu bebezinho…. foi aí que ela me disse algumas palavras que eu não percebi! Esticou-me o braço, e eu continuei sem perceber! Até que um enfermeiro congolês (servindo de intérprete Francês-Swahili) me disse: “Ela quer apertar-lhe a mão Doutor!” E assim foi, apertando-me a mão, olhando-me nos olhos, com verdade e transparência no seu olhar negro e tão profundo que ela me disse “Asante Sana! “ – (“Muito Obrigada!”). E este Aperto de Mão é o motivo pelo qual corri riscos que não precisava de correr, atravessei o mundo porque quis, e mais grave do que tudo fiz sofrer muitos de quem gosto muito, que deixei com o coração a bater, sofrendo sem ter de sofrer…. A todos esses, desculpem, mas esta é a minha forma de vos agradecer e de vos explicar porquê….

Sem comentários:

Enviar um comentário