ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Um Dó Li Tá
Existe
um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto
ou um Mateus Rosé?
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Perguntam-me
muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a
pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum.
Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram casaco como para um
baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na
lapela, porque é giro
- Eh
pá embora usar um pin?
que
representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey
-
Embora pôr o Rato Mickey?
mas
um deles lembrou-se do Senhor Scolari que convenceu os portugueses a encherem
tudo de bandeiras, sugeriu
-
Mete-se antes a bandeira como o Obama
e,
por estarem a brincar às pessoas crescidas e as play-stations virem da
América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam, todos contentes, que engraçado,
a mandarem na gente
-
Agora mandamos em vocês durante quatro anos, está bem?
depois
de prometerem que, no fim dos quatro anos, comem a sopa toda e estudam um
bocadinho em lugar de verem os Simpsons. No meio dos meninos há um tio idoso,
manifestamente diminuído, que as famílias dos meninos pediram que levassem
com eles, a fim de não passar o tempo a maçar as pessoas nos bancos, de modo
que o tio idoso, também de pin
-
Ponha que é curtido, tio
para
ali anda a fazer patetices e a dizer asneiras acerca de Angola, que os
meninos acham divertidas e os adultos, os tontos, idiotas. Que mal faz? Isto
é tudo a fazer de conta.
Esta
criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser criticadas
pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e eu não sei se
os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar Branco e um Poiares
Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé? É que
tenho a impressão de estar num jogo de índios e menos vinho não lhes fazia
mal. No lugar deles arranjava outros pseudónimos: Touro Sentado, Nuvem
Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro, também é americano, pá, e,
sinceramente, tanto álcool no jardim escola preocupa-me. A ASAE devia andar
de olho na venda de espirituosas a menores. Outra coisa que me preocupa é a
ignorância da língua portuguesa nos colégios. Desconhecem o significado de
palavras como irrevogável. Irrevogável até compreendo, uma coisa torcida, e a
gente conhece o amor dos pequerruchos pelos termos difíceis, coitadinhos, não
têm culpa, mas quando, na Assembleia, um deles declarou
- Não
pretendo esconder nem ocultar
apesar
da palermice me enternecer alarmou-me um nadita, mau grado compreender que o
termo sinónimo seja complicado para alminhas tão tenras. Espíritos tortuosos
ou manifestamente mal formados insinuam, por pura maldade, que os garotos
mentem muito, o que é injusto e cruel. Eles, por inevitável ingenuidade, não
mentem nem faltam às promessas que fazem: temos de levar em conta a idade e o
facto da estrutura mental não estar ainda formada, e entender que mudar
constantemente de discurso, desdizer-se, aldrabar, não possui, na infância,
um significado grave. A irrealidade faz parte dos cérebros em evolução e, com
o tempo, hão-de tornar-se pessoas responsáveis: não podemos exigir-lhes que o
sejam já, é necessário ser tolerante com os pequerruchos, afagá-los,
perdoar-lhes. Merecem carinho, não crítica, uma festa na cabecinha do garoto
que faz de primeiro-ministro, outra na menina que eles escolheram para as
Finanças e por aí fora. Não é com dureza desnecessária e espírito
exageradamente rígido que os educamos. No fundo limitam-se a obedecer a uns
senhores estrangeiros, no fundo, tão amorosos, que mal fazem eles para além
de empobrecerem a gente, tirarem-nos o emprego, estrangularem-nos,
desrespeitarem-nos, trazerem-nos fominha, destruírem-nos? São miúdos
queridos, cheios de boa vontade, qual o motivo de os não deixarmos estragar
tudo à martelada? Somos demasiado severos com a infância, enervam-nos os
impetuosos que correm no meio das mesas dos restaurantes, aos gritos, achamos
que incomodam os clientes, a nossa impaciência é deslocada. Por trás deles há
pessoas crescidas a orientarem-nos, a quem tentam agradar como podem à custa
daqueles que não podem. Os portugueses, e é com mágoa que escrevo isto, têm
sido injustos com a infância. Deixem-nos estragar, deixem-nos multiplicar
argoladas, deixem-nos não falar verdade: faz parte da aprendizagem das
mulheres e homens de amanhã. Sigam o exemplo do Senhor Presidente da
República que paternalmente os protege, não do senhor Ex-Presidente da
República, Mário Soares, que de forma tão violenta os ataca e, se vos sobrar
algum dinheiro, carreguem-lhes os telemóveis para eles falarem uns com os
outros acerca da melhor forma de nos deixarem de tanga. Qual o problema se há
tanto sol neste País, mesmo que não esteja lá muito certo de o não haverem
oferecido aos alemães? E, de pin no casaco que nos fanaram, isto é, de pin
cravado na pele
(ao
princípio dói um bocadinho, a seguir passa)
encorajemos
estes minúsculos heróis com um beijinho, cheio de ternura, nas testazitas
inocentes.
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