domingo, 20 de março de 2022

"AGORA VAI SER MAIS DIFICIL PUTIN TER UMA VELHICE FELIZ E DESCANSADA" - JOSÉ MILHAZES

JOSÉ MILHAZES “AGORA VAI SER MAIS DIFÍCIL PUTIN TER UMA VELHICE FELIZ E DESCANSADA” Facebook Twitter E-Mail JOSÉ FERNANDES O JORNALISTA ACOMPANHA HÁ MUITOS ANOS A EVOLUÇÃO DO ANTIGO AGENTE DO KGB, E MUITOS OUTROS ASPETOS DA HISTÓRIA ANTIGA E MODERNA DA RÚSSIA. MILHAZES TORNOU-SE UMA PRESENÇA ASSÍDUA NA TELEVISÃO DESDE QUE COMEÇOU A INVASÃO RUSSA DA UCRÂNIA ENTREVISTA LUÍS M. FARIA José Milhazes viveu quase quatro décadas na Rússia, antes URSS, e é autor de obras que exploram a História e a cultura desse país, bem como as relações entre ele e Portugal ao longo dos tempos. O último é “A Mais Breve História da Rússia — Dos Eslavos a Putin” (Dom Quixote), cujo timing não podia ter sido mais perfeito, tragicamente. Ao fim de tantos anos a viver na Rússia e a explicá-la aos portugueses, porque decidiu escrever finalmente uma História da Rússia? Não foi agora. Um livro destes demora tempo a escrever. O meu objetivo não era vender o livro com uma guerra, mas fazer com que seja cada vez maior o número de portugueses que compreendem a Rússia e os russos. Achei que era necessária uma História da Rússia escrita numa língua acessível, despida de academismos, mas rigorosa do ponto de vista histórico. É a primeira obra com essas características em língua portuguesa. O que é que a História nos diz sobre a situação atualmente em curso? Diz que a História se repete. Na Rússia o poder está muito concentrado na corte — no caso, até numa pessoa. Dantes era o czar, hoje é Putin. O sonho do império não morreu em parte da elite russa. Continua bem vivo. E em relação à ideia de que o problema de Putin é que não pode deixar o poder, pois já roubou e matou tanto que não seria seguro para ele? A guerra seria mais um argumento para ele ficar no poder. Não, pelo contrário. Ele podia continuar no poder, ou até sair com garantias para gastar à vontade o seu dinheirinho, se não se tivesse metido numa situação como esta na Ucrânia. Agora vai ser mais difícil ter uma velhice feliz e descansada. Antes da guerra, a possibilidade de ele ficar para sempre no poder era maior. Neste momento estamos a assistir ao isolamento quase total da Rússia. Embora o descontentamento interno ainda não seja muito grande, tende a subir e a criar problemas a Putin. Portanto, na sua opinião, ele agiu mesmo por convicção genuína, por acreditar que a Rússia tem de ser sempre um grande império? Sim. Resta saber se isso é uma convicção sensata ou um delírio. Eu acho que aqui há muito de delírio. E estamos a ver que esse delírio é cada vez mais claro e mais perigoso. A haver uma componente de doença mental, como já tem sido sugerido, o que a poderá ter gerado? Putin e a sua corte enganaram-se nas contas. Ele esperava que a entrada na Ucrânia fosse fácil, e que muitos ucranianos viessem às ruas saudar as tropas russas. Além da resistência, não contava que a Ucrânia tivesse um líder como Zelensky. Achava que ele não servia para nada, que era um palhaço. Mas parece que neste momento o palhaço é outro. O isolamento de Putin durante a covid, o famoso túnel de desinfeção que tem de atravessar quem se encontra com ele, aquela longuíssima mesa que o põe a uma enorme distância dos chefes de Estado que o visitam, não sugerem uma paranoia extrema? Bom, ele pode ser hipocondríaco. Mas as decisões que está a tomar, a insistência dele na rendição total da Ucrânia, na ocupação do país, isso sim, é que já são sintomas de que na cabeça de Putin algo está mal. Nunca vai haver rendição dos ucranianos? Eles vão resistir o tempo que puderem resistir. Mesmo que Putin ocupe a Ucrânia, ser-lhe-á difícil controlar um país cujo território é tão grande. Além disso, terá de reconstruir a economia ucraniana. Isso vai custar muito dinheiro na Rússia. Quais são as possibilidades de haver uma resistência efetiva a Putin dentro da Rússia? Neste momento existe um aparelho repressivo enorme que detém, prende, espanca, mata quem se opuser a Putin, mas o facto é que num domingo milhares de pessoas saíram à rua para protestar contra a guerra em várias cidades do país. Claro que isto não é suficiente. Também tem de haver mudanças de ação dentro da própria elite russa, dos próximos dele. Só a conjugação destes fatores bem como o isolamento internacional quase total da Rússia poderão fazer com que Putin seja afastado do poder. “PUTIN NÃO CONTAVA QUE A UCRÂNIA TIVESSE UM LÍDER COMO ZELENSKY. ACHAVA QUE ELE ERA UM PALHAÇO. MAS PARECE QUE NESTE MOMENTO O PALHAÇO É OUTRO” Neste momento parece pouco provável. Numa situação de guerra as coisas desenvolvem-se e as surpresas podem ser muitas. O que ontem parecia impossível hoje é realidade. Outro dia, numa obra sobre as origens das nações eslavas, li que a Rússia no tempo de Ivan IV, o Terrível, que lançou o império, já tinha uma cultura de poder específica, com raízes na ocupação mongol. Não é tanto mongol como bizantina. Ivan III casa com uma sobrinha do imperador de Constantinopla. Há uma ligação muito grande com Bizâncio, e uma herança imperial resultante. É aí que aparece a teoria da chamada terceira Roma. Moscovo seria a terceira e última Roma. Ou seja, o centro mundial do verdadeiro cristianismo, da ortodoxia. A ideologia imperialista russa tem raízes sobretudo nesse período. E não mudou desde essa altura? Pois. Não obstante as reformas pró-europeias de Pedro, o Grande, a substância bizantina continua a ser evidente na prática dos dirigentes russos. Mesmo Pedro, o Grande era bastante brutal. Sim, não era nenhum liberal. Tal como Catarina II não o era, ao contrário do que alguns pensam. Tendo vivido na Rússia 38 anos, não tem dúvidas de que na Ucrânia existe uma cultura própria? Claro que existe. Uma cultura que tem uma origem comum à russa e à da Bielorrússia, mas há muito que se separaram e autonomizaram. Na Ucrânia, por exemplo, há uma influência muito maior das ideias europeias. A Ucrânia esteve separada e entre vários impérios — o austro-húngaro, a Polónia e o império russo. A determinada altura, o ramo comum dividiu-se em três povos. Portanto a narrativa de Putin é falsa, completamente falsa. Em alternativa a dizer que não existe Ucrânia, ele também diz que a Ucrânia é só a parte oeste, não se estendendo aos outros territórios. Não. Ele já nem sequer a parte oeste diz que é Ucrânia. Agora a Ucrânia é toda sua. Ele não vai deixar independente uma parte da Ucrânia. Isso para a Rússia continuaria a ser um território inimigo, e de onde partirá certamente a resistência ucraniana. Mas quanto àquela ideia de que o Lenine criou um país artificial, atribuindo-lhe mais território do que ele devia ter... Há alguma verdade nisso. Mas eram situações históricas diferentes das de hoje. Quando Lenine criou a União Soviética, redesenhou fronteiras, que ele pensava que seriam eternas. Não era para voltarem a ser redesenhadas. O certo é que, quando a União Soviética acabou, chegou-se a um acordo que era o mais sensato: o de não mudar as fronteiras. Para evitar guerras como aquela a que hoje estamos a assistir. Em termos gerais, é legítimo dizer que o leste sempre esteve um bocado contrariado na Ucrânia? Olhe, eu não vi, por enquanto, fotografias nem filmes nem notícias dos soldados russos a serem recebidos com flores pelos ditos russófonos, que estavam, segundo Putin, a ser alvo de genocídio. Por isso, pergunto até que ponto eles querem fazer parte da Rússia. Porque é que não querem? Porque a Ucrânia é um país onde se respira melhor e que promete um futuro europeu, não um regime e uma vida como aquela que se vive na Rússia. Uma vida repressiva, extremamente desigual em termos sociais. Fechada ao mundo, e então agora muito mais. Os ucranianos queriam aderir à União Europeia. Nas repúblicas do Báltico vivem muitos russófonos, mas eles não se apressaram a fugir para a Rússia. Quiseram continuar a viver onde vivem. Como é que os russos olham para a corrupção, por exemplo? A avaliar pelo que vamos lendo, parece ser um fenómeno à escala épica nesse país. Olham como se fosse quase uma coisa inevitável. Mas quanto a ser maior do que em Portugal, permita-me discordar. Tendo em conta as dimensões dos países, penso que a corrupção em Portugal não é menor do que na Rússia. Lembro-me de um amigo russo que dava o exemplo de um motorista na estrada e dizia que a diferença lá é que se tinha de estar sempre a pagar à polícia. Cá pelo menos não era sempre. Não, não é sempre. Aqui são os transportadores que têm de pagar à polícia para ela fechar os olhos ao peso das cargas. Há a corrupção gigantesca no tecido empresarial e político. Vê-se os casos que morrem em tribunal. Os que chegam ao fim são mínimos. Outra questão é que a corrupção em Portugal se esconde muitas vezes por baixo da cunha. A cunha é uma forma de corrupção, e isso em Portugal é uma autêntica desgraça.

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