domingo, 13 de março de 2022

COMO SE TORNAM ACEITAVEIS PROPOSTAS IMORAIS - Guerra na Ucrânia - Expresso 2576 - Henrique Monteiro

SEMANÁRIO#2576 - 11/3/22 HENRIQUE MONTEIRO Como se tornam aceitáveis propostas imorais
FOTO axim Guchek/BELTA/TASS FOTO AXIM GUCHEK/BELTA/TASS Uma coisa que a moral básica ensina é não tornar as necessidades em virtude. Ou seja, um determinado facto, pela circunstância de ser necessário ou o único possível num dado momento, não passa a ser virtuoso. O mesmo se dá com as soluções que podem ser encontradas e aceites pelas partes para acabar com a invasão russa da Ucrânia. No domínio da justiça absoluta, a única solução seria a Rússia retirar, pedir desculpa e pagar uma indemnização de guerra a Kiev, já que não pode ressuscitar os mortos e desfazer o sofrimento provocado. Num mundo justo, Putin não existia, nem as armas nucleares que lhe servem de ameaça. Infelizmente, o nosso mundo não é justo, pelo que as decisões se devem adaptar àquilo que ele é. Mas isto não significa abdicar de qualquer luta por aquilo que se entende que deveria ser. Neste caso concreto, ao contrário de outros, nem se pode dizer que se trata da lei do mais forte — a NATO e os EUA superam largamente a Rússia em armamento —, mas apenas a lei do mais responsável, que não arrisca uma catástrofe nu­clear. Com muita pena, e certamente enorme raiva, Zelensky e os ucrania­nos são subtilmente empurrados para soluções que em pura teoria jamais deviam aceitar. Resta-nos o conforto de ver que os russos, apesar da farronca habi­tual, começam a falar de assuntos que jamais consentiriam — desde logo afirmar que não querem derrubar o Governo ucraniano de Zelensky e a deixar cair as justificações fantasiosas (que ainda entretiveram alguns por cá) como a ‘desnazificação’ de um país presidido por um judeu. Há, pois, esperanças de que Putin não tenha dobrado o cabo da loucura. Se a Crimeia estava perdida para a Ucrânia (de facto, não de jure), pode ser uma boa altura para resolver o conflito, aliás como o das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Luhansk. O mais sério seria conceder-lhes uma grande autonomia administrativa e política; mas para a Ucrânia poder admitir que as pode perder, seja para a independência formal, seja para se integrarem na Rússia, é normal que exija um referendo devidamente controlado por organismos independentes internacionais, mormente a ONU, e que os russos estejam fora das zonas. A pressão crescente das sanções sobre Moscovo pode fazer-lhes ver que esta é uma solução em que não perdem totalmente a face, nomeadamente dizendo, para consumo interno, que obrigaram à clarificação da situação, designadamente no Donbas. A independência da Ucrânia, assim assegurada, pode levar a outra cedência: a não-adesão à NATO, embora fique em aberto a adesão à UE. Naturalmente, como defendeu Zbigniew Brzezinski pouco antes de falecer, em 2017, a Ucrânia poderia ser um Estado-tampão, à imagem da Finlândia. Mas a cereja no topo do bolo seria o Ocidente defender o mesmo tratamento de Estado-tampão para a Bielorrússia. E, já agora, com eleições controladas por organizações independentes. Se a Rússia não pode ter a NATO tão perto, também a NATO não pode ter fantoches da Rússia a fazer fronteira com os seus países. Claro que todo este cenário, longe de ser virtuoso, ou mesmo aceitável para a Ucrânia no plano ético e dos acordos firmados pela Rússia, pode desbloquear uma guerra que de outro modo não tem saída. Para os ucranianos, o fim das hostilidades é urgente, por motivos óbvios. Mas para os russos também há pressa; não só por causa das sanções, mas principalmente porque, a cada dia que passa, perdem a atratividade que poderiam ter para alguns russófonos da Crimeia e do Donbas. Após a frieza, crueldade, mentira e desumanidade colocada nesta invasão, muitos russófonos da Ucrânia se sentiram, talvez pela primeira vez, ucranianos. Conheço pessoalmente alguns casos. O preço do império é demasiado alto em sofrimento e falta de liberdade para se poder olhar o Kremlin com respeito. A ação de Putin construiu um país e um mito através do ingrediente que mais cimenta uma comunidade: o sofrimento e as provações em conjunto; o sentimento de injustiça provocado, e o modo selvagem como se abala vidas organizadas e calmas de gente que não fez mal a ninguém. Se a Rússia não se apressa, vai perdendo apoio — desde logo o que ainda poderia ter dentro da Ucrânia, no Sul do país, mas também interno, à medida que aumentam as baixas provocadas pela inesperada resistência de Kiev. Aceitar uma derrota quando ainda pode dizer que foi uma vitória é o melhor a fazer. Claro que isso corresponde a um sacrifício e uma imoralidade em relação à Ucrânia. Mas é o mundo que temos.

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