Há quem diga que não se pode mudar generais a meio de uma batalha ou no seu início, mas a história está cheia de exemplos felizes do contrário. Em Setembro de 1939, quando Hitler invadiu a Polónia, tornando inevitável a declaração de guerra das potências aliadas, a Inglaterra substituiu o optimista primeiro-ministro Neville Chamberlain, o homem que prometera a paz para uma geração, pelo pessimista Winston Churchill, o homem que passara anos a avisar em vão para o que Hitler preparava e que chegava a Downing Street nada mais tendo para prometer do que sangue, suor e lágrimas — e a vitória ao cabo disso.

Tenho a maior consideração e simpatia pessoal por António Costa e nem por um momento duvido de que o que ele tem enfrentado no último ano nenhum primeiro-ministro de Portugal antes dele foi chamado a enfrentar, de perto ou de longe. Mas todas as pessoas são humanas e chega sempre um momento em que quebram. António Costa governou o país durante a primeira fase da pandemia com lucidez e capacidade de liderança.

Porém, houve um ponto em que quebrou.

Desde há meses para cá, desde Setembro talvez, que vem dando crescentes e evidentes sinais de cansaço, de incapacidade de ler os sinais de perigo e antecipar-se aos problemas, de desnorte e, ultimamente, até de descrença. Desde então que em todas as frentes, mas sobretudo na frente sanitária, que é a mais importante, o primeiro-ministro correu sempre atrás do prejuízo, atrás de esperanças perigosas, atrás de unanimidades ou certezas impossíveis. Sempre à espera, sempre atrasado, sempre hesitante.

Noutra profissão ou noutras circunstâncias, pedir-se-ia a António Costa que fizesse uma pausa para descanso e reflexão.

Não é o caso: o vírus não faz pausa.

Chegou o momento de o Presidente da República reflectir a sério se este Governo não deve ser substituído por um Governo de iniciativa presidencial, um Governo de emergência nacional, para durar enquanto durar esta situação de catástrofe pública. Sem dissolver o Parlamento, sem necessariamente despedir todo o elenco do actual Governo, mas apenas aqueles ministros que lá não fazem nada ou só atrapalham — e que são, pelo menos, metade — e sem preocupações de fazer um Governo de representação interpartidária, mas sim formado com base num único critério: competência e determinação para enfrentar a crise. 

2 Os notáveis 61% que Marcelo conseguiu na sua reeleição, conseguin- 2 do ainda acrescentar 140 mil votos aos de 2016, apesar dos 470 mil abstencionistas a mais, merecem uma reflexão. Atacado por todos os outros candidatos e em pé de igualdade com todos eles — aliás, até em inferioridade, pois dispensou-se de fazer qualquer tipo de campanha —, Marcelo nunca respondeu no mesmo pé, nunca resvalou para o populismo como vários deles, nunca se afastou do terreno seguro da legalidade constitucional e do bom senso. Esse terreno, onde se encontrou com 61% dos portugueses e que lhe deu a vitória em todos os 308 concelhos do país, é o lugar onde desde o 25 de Abril se situam, com uma estabilidade incrível, dois terços ou mais dos eleitores do PS e do PSD: o bloco central. Numa altura em que tanto se fala da ameaça do extremismo de direita (e menos do de esquerda, como se não existisse por cá), o caso português é notável porque, apesar de só por duas vezes, em quase 50 anos, ter permitido uma maioria absoluta do PS e outra do PSD, só por uma vez também conduziu àquilo que em vários outros países teria sido a solução mais normal na ausência de uma maioria absoluta de qualquer deles: uma aliança de Governo entre ambos. Em vez disso, os dois partidos nucleares do nosso quadro político têm optado por procurar formar maiorias ou à sua direita ou à sua esquerda — a alternativa de António Costa. Eu sei que todos guardamos memórias traumáticas do Governo do bloco central: são justas no que refere ao grande regabofe do assalto aos lugares públicos pelos boys e girls de ambos os partidos; são injustas no que se refere ao saldo final desse Governo Soares/Mota Pinto — recorreu ao FMI mas debelou uma crise das Finanças do Estado, a segunda, e negociou com êxito a entrada de Portugal na UE.

Como quer que seja, os números desta eleição presidencial e, em particular, os da votação em Marcelo vieram mostra-nos que vivemos num paradoxo politico. Que a engenhosa e inédita solução encontrada por António Costa em 2016 para transformar uma derrota eleitoral numa maioria de Governo funcionou naquela conjuntura e para aquela legislatura, com um país farto de austeridade e ausência de horizonte e com um ministro das Finanças que tinha uma alternativa e autoridade para a impor. Mas que já não é sustentável sem um acordo escrito e claro entre as partes e com a sua sobrevivência dependente de uma militante hostilização ao PSD e uma sujeição permanente às chantagens de uma extrema-esquerda que cada vez é menos confiável como parceira. Mesmo sabendo que não é lícito extrapolar sem mais os votos de presidenciais para legislativas, também não é proibido sobrepor o que é sobreponível. Quando Ana Gomes, representando a esquerda do PS, anunciou que devolveria o apoio à sua candidatura de Pedro Nuno Santos, o ministro 3700 milhões, apoiando-o por sua vez na candidatura a secretário-geral do PS, creio que terá sido como juntar o medo ao susto entre a larga maioria dos votantes PS, imaginando-a ela Presidente e a ele primeiro-ministro. Hoje, António Costa governa com e para a esquerda do PS, mais o BE, o PCP e o PAN — e contra a vontade de uma larga maioria dos portugueses. Contrariado, talvez, como o subentende o seu apoio à candidatura de Marcelo e a sua evidente aversão ao dito Pedro Nuno Santos. Mas é assim que ele governa, pois optou por sacudir, não só arrogantemente mas até inadvertidamente, qualquer apoio do PSD, ficando então nas mãos destes amigos de ocasião, refém das suas exigências, das suas ameaças, das suas particularidades. É assim, por exemplo, e para não ir mais longe, que no último Orçamento negociou em troca do voto do PAN os primeiros alicerces de um SNS para animais, financiado pelos contribuintes, numa altura em que o SNS para pessoas estoira à vista de todos, consumindo vidas, esforços desesperados de quem lá trabalha e milhões que teremos de pagar durante décadas.

3 Uma reportagem feita pelo “Diário de Notícias” na aldeia de Póvoa de São Miguel, concelho de Moura, no Alentejo, onde André Ventura obteve a sua mais alta votação numa freguesia do país (41,2%), explicou melhor do que quaisquer discursos ou proclamações como é sinistra a sua mensagem, para mais na boca de quem se exibe como devoto cristão. Porque se o discurso marginal que consiste em isolar uma comunidade específica como fonte do mal já é em si mesmo venenoso, o tom em que ele é feito pode tornar-se incendiário encontrando terreno propício para tal. Mas eu não quero cair na hipocrisia: há muitos e graves problemas com populações ciganas que têm de ser enfrentados com a lei e o Estado de direito e não fingindo que não existem. Porém, são populações e não toda uma comunidade.

E os problemas são mútuos: entre eles e as comunidades onde (não) estão integrados e destas para com eles. Em Póvoa de São Miguel vivem umas 900 almas, das quais 20% são ciganos. Estão ali há 60 anos e, no dizer dos outros, os não ciganos, perfeitamente integrados e sem problemas nenhuns: os ciganos moram em casas, têm lojas onde os outros se abastecem, frequentam-se uns aos outros, vão aos enterros uns dos outros.

Era assim até ali ter chegado a palavra de André Ventura. Agora, onde não havia um problema, passou a haver. Como disse uma cigana da aldeia, “afinal, eles são outra coisa por trás”. E porquê? Porque, explicou uma habitante branca da aldeia, “não gosto da maneira como os ciganos vivem”. Então, vá de votar em André Ventura, o homem que também não gosta de nenhuns ciganos. Em todos os locais do Alentejo onde existem fortes comunidades de ciganos — Portalegre, Mourão, Elvas, Estremoz — repetiu-se o cenário do êxito eleitoral de Ventura. Em lugar de ter vergonha, o homem rejubila com isso. Fica feliz por ganhar votos a espalhar o ódio racial e a semear a intolerância e a desavença entre vizinhos.

Não acharão os bispos portugueses que poderiam ter umas palavras cristãs para recordar a André Ventura? 

4 Nos seus desatinos populistas de campanha, defendeu Ana Gomes a regionalização, já e sem novo referendo, invocando o estafado argumento do “imperativo constitucional” e declarando que ela havia sido “bloqueada” há 20 anos. Quero lembrar a Ana Gomes que a regionalização não foi bloqueada: foi chumbada por uma larga maioria de portugueses em referendo, apesar de defendida por quase todos os partidos políticos, o Governo e o Presidente de então, os sindicatos e todos os autarcas. Mesmo assim, o não à regionalização, defendido apenas por um movimento de cidadãos de que tive a honra de fazer parte, teve, por exemplo, cinco vezes mais votos do que agora teve Ana Gomes na sua oferta presidencial.

E só não se tornou definitivo, afastando de vez cíclicas ameaças destas, porque (mais) uma absurda disposição constitucional exige uma maioria de votantes recenseados para que um referendo seja vinculativo — o que, no caso, falhou por pouco. Quando tanto se fala do crescente afastamento entre a classe política e os cidadãos, posições como a de Ana Gomes, demonstrando um total desrespeito pela vontade manifestada pelos portugueses contra a da classe política, são um exemplo eloquente dessas razões. 

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia 

Chegou o momento de o Presidente reflectir a sério se este Governo não deve ser substituído por um Governo de iniciativa presidencial, um Governo de emergência nacional, para durar enquanto durar esta situação de catástrofe pública