segunda-feira, 21 de março de 2022

GUERRA NA UCRÂNIA . País autocrático, repressivo e cleptocrático: eis a Rússia de Putin à luz dos relatórios internacionais

Expresso GUERRA NA UCRÂNIA País autocrático, repressivo e cleptocrático: eis a Rússia de Putin à luz dos relatórios internacionais Um cordão policial atravessa a Praça Vermelha, em Moscovo Vasily Maximov / Afp / Getty Images O maior país de todo o mundo não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. A constatação resulta da análise dos principais relatórios internacionais das áreas políticas e sociais. Da paz aos direitos humanos, da democracia à corrupção 21 MARÇO 2022 10:07 Margarida Mota Jornalista Ainda a guerra na Ucrânia fervilhava apenas na cabeça de Vladimir Putin e o mundo debatia-se com duas emergências à escala global: os efeitos das alterações climáticas e a pandemia de covid-19. Na busca de respostas imediatas, os países esboçaram uma união de esforços e acorreram a participar em duas iniciativas. Na frente climática, rumaram a Glasgow, na Escócia, para participarem na 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), considerada a última oportunidade para a obtenção de um compromisso sério que salve o planeta da irreversibilidade da degradação ambiental. Na batalha da pandemia, sob o chapéu da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi gizado o mecanismo Covax, que possibilita o acesso gratuito de mais de 90 países subdesenvolvidos a vacinas para a covid-19. A Rússia não participou em nenhuma das duas. COP-26 e Covax são apenas dois exemplos que revelam um posicionamento muito particular da Rússia no mundo. Aquele que é o maior dos países, em termos geográficos, não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. Comprova-o uma análise a vários relatórios internacionais de áreas políticas e sociais. A PAZ É UMA MIRAGEM A guerra na Ucrânia — que consiste na invasão de um Estado soberano por outro — é a demonstração mais recente da utopia que a paz global continua a ser. Revela também que, neste domínio, a Rússia contribui ativamente para que tal aconteça. Segundo a última edição do “Índice Global da Paz”, compilado pela organização Vision of Humanity (Austrália), que se propõe “medir a paz num mundo complexo” com base em três critérios — ‘Conflitos em curso’, ‘Segurança e Proteção’ e ‘Militarização’ —, a Rússia surge em 154.º lugar, num total de 163 países. Numa classificação em que Portugal ocupa o 4.º lugar, a Rússia tem por companhia países como Afeganistão, Síria, Coreia do Norte e Venezuela. A Rússia é “a nação menos pacífica da região [da Eurásia]” e “um dos países menos pacíficos do mundo”, lê-se no relatório, elaborado antes da presente invasão da Ucrânia. “No entanto, apesar da sua baixa classificação no Índice, a paz na Rússia melhorou nos últimos anos. Este é o segundo ano consecutivo em que a Rússia regista uma melhoria ao nível da paz. O país melhorou tanto ao nível dos ‘conflitos em curso’ como da ‘militarização’, mas registou uma deterioração quanto à ‘proteção e segurança’. Houve degradação em manifestações violentas e instabilidade política.” Para tal, contribuem episódios de agitação social como as manifestações populares, reprimidas com violência pelas forças governamentais, que se seguiram ao envenenamento e posterior detenção do opositor ao regime Alexei Navalny. O relatório fala de mais de 8500 detenções. Agentes da polícia detêm um participante numa manifestação convocada pelo opositor Alexei Navalny, em Moscovo Agentes da polícia detêm um participante numa manifestação convocada pelo opositor Alexei Navalny, em Moscovo Maxim Zmeyev / Afp / Getty Images No final de 2021, uma das organizações internacionais mais atentas aos conflitos no mundo, o International Crisis Group (Bélgica), elaborou um documento sobre “dez conflitos a ter em conta em 2022”. Num exercício quase premonitório, destacou em primeiro lugar a Ucrânia como país com maior potencial de conflito, numa altura em que já era assediada por um crescente número de tropas russas na sua fronteira. “Apesar da ameaça do Presidente russo Vladimir Putin à Ucrânia, os Estados raramente entram em guerra uns com os outros”, lê-se no documento. Até para os olhos mais habituados a antecipar conflitos, a invasão russa da Ucrânia foi uma surpresa, ainda que o International Crisis Group admita, na sua análise, que “descartar a ameaça [russa à Ucrânia] como um bluff seria um erro”. Como se está a ver. DEMOCRACIA NEM NO PAPEL “Os líderes da China, Rússia e de outras ditaduras conseguiram mudar os incentivos globais, comprometendo o consenso de que a democracia é o único caminho viável para a prosperidade e a segurança, ao mesmo tempo que encorajam abordagens de governação mais autoritárias.” Esta constatação está expressa no relatório “Liberdade no Mundo 2022”, produzido pela organização Freedom House (Estados Unidos), com o subtítulo “A expansão global dos regimes autoritários”. À semelhança do “Índice Global da Paz”, também no “Índice da Democracia”, elaborado pela Economist Intelligence Unit (Reino Unido), a Rússia está nos últimos lugares: surge na posição 124, numa lista com 167 países (Portugal é 28.º). A lista assenta em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo (onde a Rússia obtém a avaliação mais fraca), funcionamento do Governo, cultura política, liberdades civis e participação política (onde a Rússia tem melhor registo). Neste relatório, que divide os regimes políticos em “democracias completas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários”, a Rússia é um exemplo da última categoria. Igual rótulo é aplicado à Rússia no “Relatório Global sobre o Estado da Democracia”, do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Suécia), que defende que o país regrediu de uma “democracia retrógrada” para um “regime autoritário”. “Não! Não! Não!”, diz esta russa, num protesto na Praça Pushkinskaya, em Moscovo, contra a possibilidade de Putin ficar no poder até 2036 “Não! Não! Não!”, diz esta russa, num protesto na Praça Pushkinskaya, em Moscovo, contra a possibilidade de Putin ficar no poder até 2036 Sefa Karacan / Anadolu Agency / Getty Images Dois factos recentes sustentam a caracterização da Rússia como “regime autoritário”. Por um lado, a realização de um referendo constitucional, entre 25 de junho e 1 de julho de 2020, que garantiu a Putin a possibilidade de se deixar ficar no poder até 2036. Seguiu-se-lhe uma campanha de repressão dos dissidentes, que incluiu a detenção do crítico mais vocal do Kremlin: Alexei Navalny, a 17 de janeiro de 2021. Por outro lado, a 23 de dezembro de 2020, foi aprovada uma alteração legislativa, na câmara baixa do Parlamento (Duma), para silenciar opositores, jornalistas, bloggers, ativistas e outras vozes críticas de Putin, rotulados de “agentes estrangeiros”. NOTICIAR SÓ O QUE É POSSÍVEL Uma das áreas diretamente visadas pela legislação “dos agentes estrangeiros” é a da informação. Essa designação passou a penalizar repórteres como os que cobriram as grandes manifestações de Khabarovsk, no extremo leste da Rússia, entre julho de 2020 e setembro de 2021, em solidariedade com o governador local, que fora preso. Muitas vezes, os jornalistas são presos e obrigados a pagar multas pesadas. O caso de Ivan Golunov, que investiga casos de corrupção, revela outra dimensão do cerco à imprensa: em junho de 2019, foi preso pela polícia de Moscovo e acusado de “produção ou venda ilegal de drogas”. O caso tornou-se mediático, originou protestos de rua e tornou-se um exemplo dos abusos da polícia. O repórter acabaria por ser libertado e cinco ex-polícias foram acusados de terem forjado a sua incriminação. O jornalista Ivan Golunov foi preso na sequência de um caso que se revelou ter sido forjado O jornalista Ivan Golunov foi preso na sequência de um caso que se revelou ter sido forjado Vasily Maximov / Afp / Getty Images No último “Índice Mundial sobre a Liberdade de Imprensa”, dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF, França), a Rússia surge no 150.º lugar, num total de 180 países. O relatório descreve uma “atmosfera sufocante para jornalistas independentes”, com “leis draconianas, o bloqueio de sites, cortes na Internet e os principais meios de comunicação controlados ou estrangulados”. Em partes do território russo, como a Crimeia (península ucraniana anexada pela Rússia em 2014) ou a Chechénia (república no Cáucaso cujas ambições de independência foram esmagadas pela Rússia em guerras recentes) são autênticos “buracos negros” em matéria informativa. A guerra na Ucrânia e o crescente isolamento a que a Rússia está sujeita vieram dar relevância a um objetivo já anunciado do Kremlin: soberania digital, ou seja, criar uma Internet paralela que permita à Rússia desligar-se da rede global. Uma lei federal de 13 de março de 2019 — a Lei da Internet Soberana — não só dá cobertura legal a ações de vigilância digital como atribui competências ao Governo para separar a Rússia da Internet global. “Como os principais canais de televisão continuam a inundar os telespectadores com propaganda, o clima tornou-se muito opressivo para quem questiona o novo discurso patriótico e neoconservador, ou para quem apenas tenta manter um jornalismo de qualidade”, lê-se no relatório dos RSF. Esse espírito repressivo está presente numa nova lei, aprovada a 4 de março, já com a invasão da Ucrânia em curso, segundo a qual a publicação de informação “falsa” ou “mentirosa” sobre as forças armadas russas é punível com pena de até 15 anos de prisão. Pertencendo ao Kremlin o critério sobre o que é informação verdadeira ou falsa, sobra muito pouco espaço para os media independentes. Há duas semanas, o popular canal televisivo Dozhd anunciou a suspensão das suas emissões por tempo indeterminado justificando a decisão com a pressão sentida relativamente à cobertura da guerra na Ucrânia. A decisão foi tomada numa reunião dos funcionários. É apenas um caso. O jornalista russo Dmitry Muratov venceu, juntamente com a repórter filipina Maria Ressa, o Prémio Nobel da Paz 2021 O jornalista russo Dmitry Muratov venceu, juntamente com a repórter filipina Maria Ressa, o Prémio Nobel da Paz 2021 Stian Lysberg Solum / Afp / Getty Images CORRUPÇÃO ENDÉMICA Na Rússia, o combate à corrupção, como a mera denúncia de casos por órgãos de informação, tornou-se ainda mais perigoso desde a adoção da lei dos “agentes estrangeiros”. “As autoridades invadiram casas e escritórios de jornalistas e ativistas que investigavam a corrupção do Governo e declararam-nos ‘agentes estrangeiros’ sujeitos a relatos financeiros onerosos e restrições de publicação”, denuncia o último “Índice de Perceção de Corrupção”, da organização Transparência Internacional (Alemanha). Nesse relatório, a Rússia surge na 136.ª posição, em 180 países. É o país europeu mais abaixo no ranking. Portugal está no 62º lugar. Segundo a Transparência Internacional, “a corrupção é endémica na Rússia”, onde “as instituições públicas estão quase completamente nas mãos do Governo, o que faz falhar a responsabilização de quem tem o poder”. Quando a guerra na Ucrânia rebentou, a organização tomou posição, recordando a cumplicidade das economias desenvolvidas no crescimento da cleptocracia russa. “Não devia ter sido necessária uma tragédia desta escala para levar os governos do Ocidente a despertarem para os perigos de permitirem a cleptocracia”, defendeu a Transparência. “Estamos a ver as suas consequências devastadoras, agora na Ucrânia. Para evitar sofrimento futuro, os decisores nas economias avançadas precisam de acelerar com urgência políticas anticorrupção importantes. Muitas deveriam ter sido adotadas há muito tempo.” ORDEM PARA PERSEGUIR Em regimes autocráticos, como a Rússia, os direitos humanos estão entre as primeiras vítimas da repressão associada ao seu modus operandi. Um dos casos mais recentes do cerco à luta pelos direitos humanos no país foi a dissolução da organização não-governamental Memorial International, decretada pelo Supremo Tribunal. Fundada na década de 1980, na era da perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência), impulsionadas pelo Presidente soviético Mikhail Gorbachev, a Memorial teve entre os seus fundadores o dissidente Andrei Sakharov (prémio Nobel da Paz em 1975). Era a organização de direitos humanos mais antiga da Rússia. Nos relatórios de organizações globais, como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional, outras denúncias contribuem para um retrato negro da Rússia na área dos direitos humanos. Detenção de um homem junto a um tribunal de Moscovo, onde ia ser ouvido o líder da oposição e combatente anticorrupção Alexei Navalny Detenção de um homem junto a um tribunal de Moscovo, onde ia ser ouvido o líder da oposição e combatente anticorrupção Alexei Navalny Kirill Kudryavtsev / Afp / Getty Images “Em 2021, as autoridades continuaram a empregar uma variedade de instrumentos para assediar defensores dos direitos humanos e impedir o seu trabalho”, lê-se no relatório da Human Rights Watch. O documento descreve dezenas de casos envolvendo sobretudo advogados de defesa de participantes em protestos ou que litigam casos contra a Rússia em instâncias jurídicas internacionais, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Cidadãos estrangeiros a trabalhar na área, tornados ameaças à segurança nacional, recebem muitas vezes ordem de expulsão do país. Algumas organizações são consideradas “extremistas” e encerradas. A 5 de outubro de 2021, a ONG Mães de Soldados de São Petersburgo, que defende os direitos dos recrutas no exército russo há mais de duas décadas, encerrou atividades alegando “sérias restrições” impostas pelas autoridades. A decisão seguiu-se à divulgação de uma lista de 60 tópicos que passou a ser proibido abordar em público, por exemplo, divulgar informação sobre o estado de espírito dos militares. O relatório da Amnistia detalha outros problemas com grupos da sociedade alvo de leis e das forças da ordem: discriminação contra a comunidade LGBTI, aumento da perseguição a Testemunhas de Jeová, inação legislativa perante o aumento de casos de violência doméstica, tortura e maus-tratos (com impunidade para os agressores). Uma feminista russa realiza um protesto solitário contra a violência de género, em São Petersburgo Uma feminista russa realiza um protesto solitário contra a violência de género, em São Petersburgo Vyacheslav Madiyevskyy / Getty Images A Amnistia destaca ainda o aproveitamento da pandemia de covid-19 como pretexto para abortar manifestações de rua, incluindo os protestos solitários, de uma pessoa só, um tipo de protesto a que os russos recorrem para contornar a dificuldade em obter autorizações para se manifestarem. Já durante a guerra na Ucrânia, foi notícia a detenção de Yelena Osipova, conhecida artista e ativista russa que sobreviveu ao cerco nazi a Leninegrado, durante uma manifestação contra a guerra, na mesma cidade, que hoje se chama São Petersburgo. Tinha 77 anos e visíveis dificuldades de locomoção.

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