segunda-feira, 18 de abril de 2022

Comunidade Iraelita do Porto

Sinagoga Kadoorie, da Comunidade Israelita do Porto FOTO FERNANDO VELUDO/nfactos Sinagoga Kadoorie, da Comunidade Israelita do Porto FOTO FERNANDO VELUDO/NFACTOS
TEXTO LUCIANA LEIDERFARB Em dez anos, a Comunidade Israelita do Porto (CIP) passou de 30 para 750 membros, e este crescimento está diretamente ligado à emissão de certificados de ascendência sefardita, e não a um aumento exponencial de judeus a viver na cidade. Durante esta década, os requerentes foram “convidados” a filiar-se, sem pagamento de quota, ainda que jamais tivessem visitado Portugal. “É uma comunidade virtual”, diz ao Expresso uma fonte da CIP que prefere manter-se anónima. A Sinagoga Kadoorie, que pertence à CIP e é considerada uma das maiores da Europa, costumava ter apenas “duas ou três pessoas” em finais de 2010 nos serviços religiosos. Depois, algo mudou: segundo a mesma fonte, um não-judeu fez o pedido de a frequentar, reunindo-se pela primeira vez com o então presidente da CIP, Ferrão Filipe, e também com o rabino Daniel Litvak. Esse novo elemento chamava-se Francisco de Almeida Garrett, era advogado formado na Universidade Lusíada, sobrinho de Maria de Belém Roseira, e ganharia nos anos seguintes cada vez mais influência, até se tornar vogal da direção da comunidade e ele próprio se converter ao judaísmo. Dez anos depois, Almeida Garrett e Litvak são arguidos numa investigação criminal por tráfico de influência, corrupção ativa, falsificação de documentos, lavagem de dinheiro, fraude fiscal qualificada e associação criminosa. O que ocorreu entre 2011 e 2021 para que a comunidade aumentasse de tamanho 25 vezes? A aprovação no Parlamento, em 2013, do artigo que permitia a atribuição da nacionalidade portuguesa aos judeus de origem sefardita, que seria objeto de regulamentação em 2015. Nesse decreto-lei, a exclusividade da certificação da ascendência sefardita dos candidatos foi delegada em duas comunidades judaicas, a do Porto e a de Lisboa. Mas o envolvimento da CIP neste processo pode ter ido mais longe. O Expresso sabe que uma testemunha relatou à PJ ter ouvido Francisco de Almeida Garrett dizer, repetidas vezes, que a tia Maria de Belém Roseira “trataria” da aprovação da alínea 7 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade no Parlamento. Maria de Belém nega. “Sou jurista desde 1972 e estou em atividade legislativa desde 1973, não preciso que ninguém me escreva um número de um artigo de uma lei”, contrapõe a ex-ministra do PS ao Expresso. “Sendo filho de uma irmã minha, conheço o Francisco, mas em termos profissionais não temos nada a ver. Nunca fui à CIP e não conheço ninguém da comunidade”, acrescenta. À PJ, a mesma testemunha afirmou também que o decreto-lei de 2015, aprovado pelo Governo de Pedro Passos Coelho, terá sido elaborado em conjunto por Almeida Garrett, Daniel Litvak e uma advogada com escritório no Porto, na Rua João Crisóstomo. O Expresso tentou, sem sucesso, falar com a advogada em questão. Já Almeida Garrett limitou-se a responder que “a CIP foi consultada para o efeito pelos partidos daquele Governo e deu o seu parecer dizendo que deveria ser constituída uma comissão internacional”. É sobre o sobrinho de Maria de Belém Roseira que recaem as maiores suspeitas. O PODER DE ALMEIDA GARRETT Um membro da comunidade denunciou à Polícia Judiciária que Almeida Garrett se ocupou de manobrar o poder dentro da comunidade e de “ameaçar os membros da direção”, e de ter estado diretamente envolvido na nomeação dos presidentes da CIP que sucederam a Ferrão Filipe. Garrett terá escolhido “a dedo” dirigentes que passavam longos períodos fora de Portugal ou residiam noutros países, como Dale Jeffries, que vivia em Miami, e Sam Elijah, inglês conselheiro na corte britânica. Este último foi substituído por Yigal Ben Zion, com morada em Israel, que se aproximou da comunidade para solicitar passaporte português, alegando a origem turco-portuguesa da avó. Recentemente, uma reportagem de “A Prova dos Factos” (RTP) desmentiu essa origem e demonstrou que Ben Zion era natural do Uzbequistão, sem ligações à Turquia nem a Portugal. Numa lista de certificados emitidos pela CIP, a que o Expresso teve acesso, Ben Zion surge como tendo nascido no Uzbequistão, em abril de 1969. “Sendo filho de uma irmã minha, conheço o Francisco, mas em termos profissionais não temos nada a ver. Nunca fui à CIP e não conheço ninguém da comunidade”, diz Maria de Belém Membros da CIP recordam-se dele como Igor. De acordo com o que um deles relatou à PJ, terá sido Yigal/Igor quem trouxe para Portugal o dossiê de Roman Abramovich, por intermédio do rabino-chefe da Rússia, Berel Lazar. Com fortes ligações a Vladimir Putin, ao ponto de ser apelidado como “Putin Rabbi”, Lazar conhece Roman Abramovich desde os anos 90. E é citado pelo rabino Litvak, da CIP, numa carta manuscrita que consta do processo de certificação sefardita do dono do Chelsea, já divulgada pelo Expresso. Nesse documento, Litvak apresenta “as razões da aprovação de certificação de Roman Abramovich”, argumentando que aquele “tem origem sefardita atestada pelo Grande Rabinato russo” e “tem memória familiar atestada por Rab. Lazar”. Em 2019, Berel Lazar visitou o Porto e deixou-se fotografar ao lado de Yigal Ben Zion e de Daniel Litvak, numa imagem publicada no blogue da própria CIP. A origem sefardita de Abramovich foi também atestada pelo rabino Alexander Boroda — presidente da Federação das Comunidades Judaicas da Rússia e próximo de Putin —, destinatário de avultadas doações por parte do próprio Abramovich e que requereu à CIP, em julho de 2020, um certificado para se tornar português. E se todos estes rabinos garantiram a ascendência sefardita do oligarca russo, que tem nacionalidade israelita e tem doado milhões a diversas comunidades judaicas, o 1.º volume da 2.ª edição da Enciclopédia Judaica diz que Abramovich é “um milionário russo nascido de mãe não judaica”. Segundo a lei desta religião, isto significa que não é judeu. SEGURANÇA À PORTA E REDE ILEGAL Em 2014, a entrada na sinagoga passou a ser controlada por um segurança chamado Jorge Brito e conhecido como homem de confiança de Almeida Garrett. Brito tinha a função de impedir a entrada de certas pessoas, entre os quais judeus e antigos membros da comunidade frequentadores do templo há décadas. O Expresso sabe que membros como Ferrão Filipe, Marco Medina, José Amaral, Jorge Neves, Andre Megaides, Emanuel Fonseca, Abraham Sarfati e Jorge Carrulo foram proibidos pela direção da CIP de continuar a frequentar a Sinagoga Kadoorie. Por sua vez, este funcionário surge nas folhas de despesa da loja kosher da CIP, a que o Expresso acedeu, como uma das pessoas a quem são feitos pagamentos “não faturados”. Não são as únicas estranhezas. De facto, o Expresso sabe que uma testemunha denunciou à PJ a colaboração da CIP com uma rede de falsificação de documentos sediada em Casablanca e pertencente a um indivíduo de nome Marco Street. Este foi certificado como sefardita de origem portuguesa pela CIP a 28 de julho de 2016. A mesma testemunha asseverou que Street cobrava €6500 por emitir uma nova certidão de nascimento carimbada pelo Reino de Marrocos e atestada pelo Tribunal Rabínico de Casablanca, e que muitos pedidos de certificação chegaram à CIP através desta rede. Os certificados da CIP seriam alegadamente assinados pela vice-presidente Isabel Ferreira Lopes — neta de Artur Barros Basto, um dos fundadores da comunidade —, assim como acontece com todos os certificados passados pela comunidade. Por outro lado, CIP adquiriu uma série de imóveis que levantaram alguns alertas. O primeiro foi um edifício em frente à sinagoga, na Rua Guerra Junqueiro, onde em 2019 foi alojado o Museu Judaico do Porto: foi inaugurado quatro vezes e esteve sempre encerrado. Depois veio o do Museu do Holocausto do Porto, que abriu ao público em 2021. A CIP é também proprietária de um edifício no qual funciona um restaurante kosher de nome Ibéria, aberto no início de 2021. Mas a PJ tem conhecimento de uma outra propriedade, uma quinta em Gondomar pertencente a Almeida Garrett, alugada por dez anos — ou comprada com promessa de revenda nesse período — pela CIP, por €1,5 milhões. O CONTRADITÓRIO Contactado por este jornal, Francisco Almeida Garrett respondeu, por escrito, o seguinte: “A pedido de outros membros da direção da CIP, foi vendida, com opção de recompra por mim, sem prejuízo para aquela, uma quinta que visava os fins mais elevados da organização. Naturalmente voltarei a recomprá-la depois.” Confirmou, por sua vez, que Jorge Brito era “um funcionário da comunidade, com contrato assinado” há sete anos, e que o acesso à sinagoga apenas foi vedado a “um único associado”, sendo que “nunca a sinagoga teve tanta gente em oito décadas”. Afirmou que “toda a atividade da CIP é realizada por via bancária”, que “as contas são transparentes e aprovadas em assembleias-gerais anuais”, e que não tem qualquer acesso às contas, cujos responsáveis são a vice-presidente e o tesoureiro. Quanto à rede de Casablanca, Almeida Garrett não desmente ter conhecimento, realçando que a CIP alertou a ministra da Justiça para o facto, através de um e-mail enviado a 8 de março de 2019 — recorde-se que o alegado líder da rede, Marco Street, recebeu certificação da CIP em 2016. Almeida Garrett rematou: “Dado que as autoridades levaram dez anos das [minhas] comunicações privadas, fácil será verificar quão falso é a indiciação acima descrita, a qual, aliás, nada tem a ver com qualquer detenção, corrupção e associação criminosa.” Desde 2017 que as irregularidades da CIP na atribuição de certificados são do conhecimento do DCIAP. Neste momento, o Expresso tem a informação de que a PJ está a inquirir testemunhas. COM RUI GUSTAVO

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